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O Reino Unido está construindo sua joia da coroa nuclear; muitos temem que acabe se tornando o maior buraco financeiro

  • O governo britânico apresenta o projeto como um marco de soberania energética. Os críticos, porém, falam em um “monstro” impossível de construir.

  • França e China já testaram o reator EPR com atrasos que custaram bilhões. O Reino Unido confia em não repetir essa história.

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Sofia Bedeschi

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Sofia Bedeschi

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Jornalista com mais de 5 anos de experiência, gamer desde os 6 e criadora de comunidades desde os tempos do fã-clube da Beyoncé. Hoje, lidero uma rede gigante de mulheres apaixonadas por e-Sports. Amo escrever, pesquisar, criar narrativas que fazem sentido e perguntar “por quê?” até achar uma resposta boa (ou abrir mais perguntas ainda).

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Duas cifras bastam para entender a dimensão do desafio britânico: cerca de R$ 255 bilhões em investimento e seis milhões de lares abastecidos com energia nuclear por sessenta anos. Assim se apresenta a Sizewell C, a usina que Downing Street descreve como um motor de energia limpa e geração de empregos. Seus críticos, porém, a enxergam como um poço financeiro e a última tentativa de dar vida a um projeto nuclear tão complexo que, na França, já é chamado de “o monstro”.

A joia da coroa

O objetivo do governo britânico é dobrar a capacidade nuclear do país até 2050 e garantir um fornecimento estável de energia de baixo carbono. A Sizewell C, com dois reatores do tipo EPR (Reator Pressurizado Europeu), é a peça-chave dessa estratégia. De acordo com a BBC, o projeto é o sucessor da Hinkley Point C, em Somerset, que já acumula uma década de atrasos e custos fora de controle: de mais de 18 bilhões de libras previstos em 2010 para cerca de R$ 308 bilhões hoje (46 bilhões de libras).

A ministra Rachel Reeves declarou ao The Guardian que o investimento é “um poderoso respaldo ao Reino Unido como o melhor lugar para fazer negócios e como centro global da energia nuclear”. Já Henri Proglio, ex-diretor da elétrica francesa EDF — responsável pelo desenvolvimento do projeto —, afirmou ao Financial Times que o design do reator é “assustador” e “quase impossível de construir”.

Opiniões divididas

Os críticos não têm dúvidas. Proglio o descreve como “uma máquina com mais vergalhões do que concreto”. Outro engenheiro, também citado pelo FT, falou em um “erro colossal”. E o Greenpeace alertou à BBC que, desta vez, serão os contribuintes — e não a EDF — quem pagarão pelos inevitáveis custos extras.

Mas também há vozes mais moderadas. Tony Roulstone, professor de Cambridge e ex-executivo da Rolls-Royce, disse ao FT que Sizewell poderia ficar pronto “um ou dois anos antes de Hinkley” e custar 20% menos. Isso graças ao fato de que grande parte do design já foi testado e de que a cadeia de suprimentos se consolidou em Somerset.

As obras já começaram em Suffolk

O projeto não está só no papel. Segundo o Financial Times, 1.700 operários já trabalham nas etapas preliminares, a primeira delas um muro perimetral de 55 metros de profundidade e 3 quilômetros de extensão para drenar o pântano antes de lançar os alicerces. 

Além disso, haverá mudanças para evitar os erros de Hinkley. Desta vez, as estruturas de concreto serão pré-fabricadas em oficinas, e não erguidas no canteiro, o que deve acelerar os prazos.

Ainda assim, o calendário oficial — entrada em operação para meados ou fim da década de 2030 — levanta dúvidas. Flamanville, na França, e Hinkley já mostraram que os prazos em projetos desse porte costumam não sair do papel, como critica Nils Pratley em sua coluna no The Guardian.

É muito complexo. Mais do que parece à primeira vista. 

Os EPR são reatores nucleares de Geração III+, fruto da colaboração franco-alemã entre a EDF e a Siemens. Segundo a World Nuclear Association, foram projetados para oferecer uma potência elétrica líquida entre 1.600 e 1.650 MW, podendo chegar a 1.770 MW. 

Além disso, contam com sistemas de segurança avançados: dupla contenção, quatro sistemas independentes de resfriamento, um core catcher para conter o núcleo em caso de fusão, resistência estrutural a impactos e terremotos, além de geradores a diesel e baterias de reserva para garantir a operação diante de falhas múltiplas.

Também se destacam pela maior eficiência energética, consumindo até 17% menos combustível que reatores antigos e produzindo até 14% mais energia. Tudo isso com uma vida útil projetada de 60 anos. Essa complexidade técnica é, ao mesmo tempo, uma força em termos de segurança e eficiência, e um desafio, pelos atrasos e custos extras já observados em sua construção.

A conta chega ao bolso dos britânicos

O custo da usina já supera o dobro das primeiras estimativas, segundo a BBC. A maior parte — cerca de R$ 245 bilhões (36,6 bilhões de libras) — será coberta com dívida pública pelo Fundo Nacional de Riqueza. A divisão da participação acionária fica entre o Estado (o maior sócio, com 44,9%), a Caisse canadense (20%), a Centrica (15%), a EDF (12,5%) e a Amber Infrastructure (7,6%).

A grande novidade é o modelo de “base de ativos regulada” (RAB), no qual as famílias começarão a pagar cerca de R$ 6,70 por mês (1 libra) em suas contas de luz durante pelo menos uma década, explicou Julia Pyke à BBC. Esse esquema protege principalmente os investidores, como lembrou Nils Pratley no The Guardian: a Centrica garante retornos de mais de 10% mesmo que os custos cheguem a R$ 320 bilhões (47,7 bilhões de libras); qualquer excesso será assumido pelos contribuintes.

A França já tentou. Mas com problemas

O primeiro reator EPR francês, Flamanville 3, na Normandia, foi conectado à rede em dezembro de 2024 após 12 anos de atrasos e com um custo final de R$ 70 bilhões (€13,2 bilhões), quatro vezes o valor inicialmente previsto.

Como explicou o Financial Times, a experiência francesa obrigou a redesenhar o conceito, por isso a EDF já não prioriza o EPR, mas sim o EPR2, uma versão simplificada e mais barata que pretende construir em seis unidades até 2038. Enquanto isso, a China já demonstrou com sua usina de Taishan, que opera há anos com um EPR de 1,75 GW, que esse é um dos reatores mais potentes do mundo.

Um continente que vira para a nuclear

A aposta britânica acontece em um contexto europeu contraditório. A Alemanha fechou sua última usina em 2023 e a Espanha prevê encerrá-las em 2027. A França, ao contrário, mantém a energia nuclear como pilar (70% da sua eletricidade) e acelera novos projetos EPR2.

O tabuleiro se move: sob a liderança do chanceler Friedrich Merz, a Alemanha deixou de bloquear a França e aceitou que a nuclear receba o mesmo tratamento que as renováveis na legislação da UE. O acordo inclui dar status “verde” ao hidrogênio rosa e abre caminho para financiamento europeu, embora a Áustria siga contra e países como Bélgica e Países Baixos reavaliem suas políticas.

Em meio a esse debate continental, o Reino Unido, fora da União Europeia, avança sozinho com a Sizewell C: um EPR que até mesmo a EDF já deixou em segundo plano em favor do EPR2, enquanto na Europa ganham espaço os SMR e a fusão nuclear.

E os SMR? 

A escolha pelo design EPR segue uma lógica de continuidade. O Reino Unido já possui a cadeia de suprimentos, engenheiros e parte do know-how acumulado em Hinkley. Como explicou a diretora técnica Tilly Spencer ao FT: “Não temos o custo nem o risco de um design imaturo”.

Já os reatores modulares pequenos (SMR) ainda não atingiram maturidade. Embora ofereçam vantagens como menor custo operacional, possibilidade de instalação em áreas reduzidas ou até em plataformas flutuantes, continuam caros. 

Segundo um relatório da agência científica australiana CSIRO, os SMR são atualmente a tecnologia de geração mais cara, acima inclusive da nuclear convencional. O projeto canadense Darlington, com um SMR de 1.200 MW, custará cerca de R$ 125 bilhões (US$ 23,2 bilhões), mais caro que uma usina tradicional.

Por isso, a Sizewell C foi aprovada no modelo de grande reator EPR, ainda que provavelmente seja a última desse tipo.

O dilema britânico

Para o governo, a Sizewell C simboliza soberania energética depois da crise do gás russo. “É hora de voltar a fazer grandes coisas neste país”, disse o secretário de Energia Ed Miliband à BBC.

Ainda assim, o contraste entre os discursos oficiais e as experiências anteriores levanta dúvidas. Será que a Sizewell será um catalisador da “nova era dourada nuclear”, como a descreveu Miliband, ou um monumento a custos extras e atrasos?

 Como resumiu um alto executivo do setor nuclear ao FT: “Os chineses têm hoje o melhor produto do mundo e o constroem em seis anos. Mas a política se impõe à tecnologia e ao dinheiro”.

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