A Ucrânia possui um laboratório de pesquisa com dezenas de quilos de urânio enriquecido; já realizou 70 bombardeios

Cada dia de guerra prolonga um pulso em que a radiação pode se tornar uma arma involuntária ou deliberada, com efeitos que transbordariam fronteiras

Imagem | Ministry of Defense of Ukraine, energoatom.com.ua
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Fabrício Mainenti

Redator

Na guerra na Ucrânia, a energia nuclear não é apenas uma questão de armas. Entre os cenários mais devastadores que pairam sobre o conflito, está a possibilidade de um erro levar a um desastre ambiental sem precedentes. Já sabíamos que a usina de Chernobyl tinha um vazamento e continua irreparável, mas o escopo é muito mais amplo do que a própria usina.

Sob constante ameaça

A verdade é que a invasão russa da Ucrânia não apenas transformou o cenário militar da Europa, mas também colocou em risco uma extensa rede de instalações nucleares que nunca foram projetadas para resistir a bombardeios. Embora a atenção internacional tenha se voltado para a usina nuclear de Zaporizhia, a maior da Europa e em mãos russas desde 2022, o país abriga múltiplos reatores, laboratórios de pesquisa e depósitos de combustível irradiado que criam um delicado mosaico de riscos.

Entre eles, destaca-se o Instituto de Física e Tecnologia de Kharkiv, que abriga o dispositivo conhecido como Neutron Source, que contém várias dezenas de quilos de urânio enriquecido capaz de contaminar vastas áreas, se disperso. Localizado a apenas 14 quilômetros da frente, o edifício sofreu mais de 70 ataques confirmados de munição russa, aumentando os temores de que o ataque de Moscou não tenha sido acidental, mas deliberado.

Kharkiv, um alvo militar

O instituto, que na era soviética contribuiu para o projeto da primeira bomba atômica de Moscou, concordou, em 2010, em retirar seu urânio para armas e enviá-lo à Rússia sob pressão dos Estados Unidos, em um esforço de não proliferação. No entanto, ainda abriga materiais extremamente perigosos, como o urânio altamente radioativo contido na Neutron Source, construída com financiamento americano em troca dessa renúncia.

A instalação combina um núcleo do tamanho de um ônibus escolar com um acelerador de partículas de cerca de 30 metros de comprimento, cercado por blindagem metálica, mas o prédio que o abriga carece de proteção contra ataques. Os bombardeios deixaram rachaduras, causaram a queda de gesso das paredes e até destruíram um transformador em 2022, mergulhando o complexo em meses de apagões e forçando os cientistas a improvisar sistemas de aquecimento para evitar danos irreversíveis às barras de combustível. A Ucrânia acusa a Rússia de ecocídio, alegando que um impacto direto poderia liberar radiação sobre uma área habitada por 640 mil pessoas.

A instalação nuclear Neutron Source em Kharkiv em 4 de abril A instalação nuclear Neutron Source em Kharkiv, em 4 de abril

O espectro de Chernobyl

Desde o início da invasão, cenários de catástrofe nuclear têm estado presentes. Em fevereiro de 2025, um drone russo perfurou a estrutura de aço que cobria o reator 4 de Chernobyl, a área mais contaminada do planeta, rompendo sua vedação hermética, embora sem vazamentos imediatos. Em Zaporizhia, repetidos ataques comprometeram o resfriamento dos seis reatores, especialmente após a destruição de uma barragem em 2023, que forçou a dependência de um reservatório de emergência e de duas linhas de energia vulneráveis ​​ao fogo de artilharia.

Cada incidente alimenta o medo de um acidente radiológico que, mesmo que não na escala de 1986, poderia dispersar materiais contaminantes por grandes áreas da Europa Oriental. O mero momento de certos ataques, como o de Chernobyl, às vésperas da Conferência de Segurança de Munique, é interpretado por Kiev e seus aliados como mensagens estratégicas do Kremlin, que usa o risco nuclear como arma de intimidação política.

Efeitos colaterais

Além disso, não são apenas as instalações ucranianas que estão em risco. No final de agosto, destroços de um drone ucraniano interceptado danificaram uma estação transformadora perto da usina nuclear de Kursk, em território russo, forçando a redução da produção. O episódio ilustrou como a guerra transforma a infraestrutura nuclear civil em danos colaterais de um confronto militar no qual drones, mísseis e artilharia operam cada vez mais perto de alvos de alto risco.

Especialistas observam que nenhuma usina nuclear ou laboratório de pesquisa na Ucrânia foi construído para resistir a impactos diretos de munições modernas; portanto, o prolongamento do conflito aumenta a probabilidade de um acidente.

Entre a resiliência e a ameaça constante

O New York Times noticiou em uma extensa reportagem que, apesar do perigo diário, cientistas ucranianos do instituto de Kharkiv continuam com projetos de fusão nuclear e experimentos com hidrogênio radioativo, coletando dados que esperam apresentar em conferências internacionais. O paradoxo de continuar a pesquisa sob bombardeio reflete tanto a resiliência do pessoal, quanto a fragilidade de um país que, além de resistir militarmente, precisa proteger materiais cuja liberação teria consequências devastadoras.

Nas palavras de um dos engenheiros do centro ao Times, os ataques russos parecem ilógicos, mas sua recorrência sugere uma estratégia de pressão por meio do risco radiológico. Até agora, a catástrofe foi evitada pelo acaso e por contingências técnicas, mas cada dia de guerra prolonga um pulso no qual a radiação pode se tornar uma arma involuntária ou deliberada, com efeitos muito além das fronteiras da Ucrânia.

Imagem de capa | Ministério da Defesa da Ucrânia, energoatom.com.ua

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