O artigo número 3 da Declaração dos Direitos Humanos diz que todos têm direito “à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, no entanto, essa ainda é uma questão debatível, afinal muitas pessoas não têm acesso aos recursos básicos ditos em uma das leis mais básicas do mundo. A água (e a falta dela) é uma dos casos. Segundo a Organização das Nações Unidas, cerca de 2.1 bilhões de pessoas ainda não têm acesso à água potável ou saneamento básico. É aqui que entram os esforços da Sanitation and Water for All (SWA), que desde 2010 trabalha com governos para tentar garantir este direito básico para todos, incluindo pessoas fora de centros urbanos.
“A SWA é uma parceria global visando elevar a água e o saneamento ao mais alto nível político. A razão para isso é que o acesso à água e ao saneamento, entre os muitos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio em 2010, o acesso à água e ao saneamento estava atrasado. E assim, uma das soluções propostas pelo Relatório de Desenvolvimento Humano de 2006 foi elevar a água e o saneamento ao nível político, porque na maioria dos gabinetes, há muitos ministros analisando diferentes partes dessa questão,” disse o CEO interino da organização Muyatwa Sitali, em entrevista ao Xataka Brasil. “A ideia era levar essa questão ao nível político certo para envolver os ministros na obtenção de financiamento para água e saneamento, mas também na garantia de planejamento e intervenções políticas que pudessem fazer a diferença”.
Sitali explica que a SWA tem cerca de 500 parceiros que vão desde organizações não governamentais a governamentais, o setor privado, prestadores de serviços, concessionárias de serviços públicos e até mesmo reguladores e universidades.
“Percebemos que o desafio da água e do saneamento não era apenas para os países pobres. Não era apenas para a África, não era apenas para a Ásia, era também para os países de renda média.”
É até curioso saber que países em continentes ditos como “tão avançados” também têm problemas sociais como a falta de água. Só nos EUA, cerca de 8% da população (26,7 milhões de pessoas) vivem em áreas que a água é limitada por diversos períodos do ano. Olhando para os parceiros governamentais da SWA, é interessante notar até a falta de países “ricos”, sendo Portugal a única presença europeia e denominado “país de primeiro mundo”.
Desafios
Garantir água para todos não é uma tarefa fácil, ainda mais quando territórios estão em constante conflito, como, por exemplo, a Guerra Russo-Ucraniana, que teve seu ápice nos anos de 2021 e 22 e continua até hoje, e até a guerra entre Israel e Gaza.
“Chamamos de “países frágeis””, disse Sitali. “Talvez tenham acabado de sair de um conflito ou tenham diferentes tipos de fragilidade. Talvez uma parte do país esteja em conflito ativo ou haja apenas alguns desafios significativos que criam um ambiente muito difícil. A parceria em si não presta serviços, então não estamos em países que perfuram poços e tubulações, mas trabalhamos no nível de governança para garantir que a tomada de decisões inclua o planejamento e os recursos financeiros. Em zonas de conflito, não se pode suspender os direitos humanos à água e ao saneamento. Não se pode colocá-los em espera até que uma guerra passe. A necessidade de acesso à água e ao saneamento é uma questão diária, básica, essencial e fundamental. Portanto, estamos sempre convocando nossos parceiros e todos os principais atores nesta área a entender que os direitos humanos à água e ao saneamento devem ser protegidos, mesmo em tempos de conflito, como parte do direito internacional humanitário”.
Caminhões carregados com água potável e suprimentos alimentares, chegam a Gaza sob a supervisão de equipes das Nações Unidas (Getty Images/Anadolu)
Com bloqueios para a ajuda de ONGs e estruturas devastadas, é difícil imaginar como a população consegue ter o mínimo de acesso à água potável, ainda mais quando os governos estão em conflito. Desde o início do conflito entre Israel e Gaza, cerca de 90% da população palestina não tem acesso aos recursos básicos para viver, incluindo água.
“O acesso à água e ao saneamento, ou às instalações e sistemas de água, não devem ser usados como ferramentas de violência ou de guerra. Estes são serviços necessários a todos, e não podem ser suspensos, não podem ser colocados em espera.”
Se garantir água e saneamento são desafios grandes em áreas de conflitos, as consequências do aquecimento global também intensificam as dificuldades e provam ser uma questão que deixa tudo mais urgente.
“A maioria dos problemas relacionados ao clima são, na verdade, problemas relacionados à água,” falou Sitali. “Ou há excesso, ou escassez de água, secas ou inundações. Temos trabalhado nessa questão de forma muito dedicada, sabendo que não podemos garantir o acesso à água e ao saneamento de forma contínua sem considerar os riscos que essas mudanças climáticas impõem aos nossos sistemas de prestação de serviços. Analisamos como nossos planos estão incorporando esses riscos climáticos. Apoiamos e trabalhamos com países para analisar suas vulnerabilidades climáticas”.
Sitali explica que trabalhou com instituições da ONU para criar indicadores para saber como os sistemas de água e saneamento básico de determinada região são eficientes e, adaptando para a necessidade de cada lugar, saber se aqueles planos vão ter apoio político e financeiro.
“Os riscos climáticos nos apontam para a necessidade de garantir que os serviços que já temos não sejam perdidos e que, quando pensamos no futuro, devemos pensar em serviços que possam perdurar, que possam resistir a choques.”
Enchente de 2024 no Rio Grande do Sul, no Brasil (Getty Images/Cid Guedes)
O CEO interino também ressalta a importância de que se esses serviços sejam afetados de alguma maneira no futuro em decorrência de catástrofes, eles precisam criar planos para reativar os serviços.
A SWA estará na COP30, que será realizada em Belém, no Brasil, e explica que a urgência para diminuir os efeitos do aquecimento global pode ajudar a aumentar a atenção para essas questões.
“Um evento climático realmente nos chama a atenção novamente para a importância desses serviços. Precisamos ter preparação suficiente para podermos contar com eles, porque são serviços vitais e estão na linha de frente da maioria das coisas que fazemos para termos uma boa economia, para termos bons sistemas de saúde e de educação.”
É claro, garantir água e saneamento tem seus desafios, mas desde 2010 há ainda uma preocupação maior em relação à qualidade da água que todos tomamos. Segundo a Revista de Hidrologia de Contaminantes, cerca de 83% de toda a água potável na Terra tem a presença de microplásticos — microscópicos fragmentos de plástico —, e muitos artigos já expõem seus impactos a longo prazo na saúde.
“Isso requer o fortalecimento dos marcos regulatórios para garantir que os prestadores de serviços de água forneçam água que atenda aos padrões básicos acordados nesses países, além de aprimorar os sistemas de monitoramento e investir em tecnologias que previnam a contaminação desde a produção até o armazenamento, o uso e a gestão de águas residuais. E isso significa que é um problema não apenas para os países pobres, mas também para as comunidades ricas.”
Tal preocupação atinge até criaturas não humanas, como animais e a flora, não só em uma questão de acessibilidade da água, mas na qualidade dela. Recentemente, cientistas acharam a presença de microplásticos no estômago de macacos da Amazônia. Com o desmatamento de grandes áreas verdes, a expansão de grandes centros urbanos e contaminação de água por empresas, cada vez mais a flora e fauna vão ou retomando seus lugares na cidade, ou se afastando ainda mais, mas ainda tendo que sofrer as consequências da realocação.
Ave tomando água suja durante a seca do Pantanal (Getty Images/Lucas Ninno)
“Estamos analisando a gestão dos recursos hídricos, que vai além de apenas beber água e saneamento em casa, também estamos analisando como esse tópico interage com a origem da água, dos rios, como todo esse canal acaba com água na torneira. O que podemos fazer em nosso planejamento, em nosso financiamento e em nossas políticas para garantir que não estejamos extraindo muito ou que nosso planejamento não esteja afetando os serviços de água para outros usos para a fauna e a flora,” disse Sitali mencionando que a SWA falou sobre a questão na Reunião de Ministros do Setor (RMS) em Madri, Espanha, em 22 e 23 de outubro.
A mesma questão impacta comunidades indígenas, a população que mora fora dos centros urbanos e até ribeirinhas, que estão ainda mais expostos às mudanças climáticas como enchentes e secas.
“Vemos esse desafio não apenas no Brasil, mas também em outros países, principalmente na América Latina. Atualmente, o Brasil fez avanços importantes na expansão do acesso à água e ao saneamento, especialmente desde a adoção do Marco Legal do Saneamento, que estabelece metas ambiciosas para o acesso universal até 2033. O progresso continua desigual para algumas comunidades. Ainda há muito a ser feito, e isso também significa que priorizar esses serviços para comunidades que podem estar atrasadas, comunidades que podem não ter capacidade, capacidades institucionais e financeiras para ter acesso a esses serviços continuará sendo um componente crítico.
Sitali menciona a iniciativa Caminho das Águas, criado pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), para potencializar a comunicação de ações, campanhas e projetos em defesa da água como direito e bem comum, atuando em regiões de todo o Brasil.
“Temos uma iniciativa em saneamento e água que reúne chefes de estado que consideram a água e o saneamento uma prioridade crítica para seus mandatos, e esse trabalho reúne esses chefes de estado e de governo para poder trabalhar juntos e criar um movimento de líderes para alcançar serviços de água e saneamento, não apenas em áreas urbanas, não apenas para um grupo específico de comunidades em termos de comunidades ricas, mas para todos, sempre e o tempo todo.”
O Nepal é um dos parceiros da SWA (Reprodução/Sanitation and Water for All)
Entre outras preocupações há ainda a necessidade da educação da população em relação aos cuidados com a água e medidas básicas de saneamento, afinal não adianta garantir esses dois direitos e a própria população não saber cuidar.
“Trabalhamos principalmente ao nível nacional, mas a maioria [dos países] também está trabalhando com o governo local ou com o governo subnacional e é por isso que países como Brasil, Nigéria, Indonésia, Quênia e vários outros também estão na parceria, porque estão preocupados com como esses serviços estão sendo prestados no nível subnacional. O que é realmente crítico em termos de indivíduos serem capazes de cuidar dos serviços, de fornecer os serviços, vemos aqui o papel crítico das mulheres, porque elas são as que estão na linha de frente na maioria das comunidades, garantindo que a água seja segura, limpa em casa e também na gestão da água.”
Garantir o acesso universal à água potável e ao saneamento básico é mais do que uma meta — é um dever ético e humano. As ações da SWA e de outras organizações mostram que o debate precisa ir além da infraestrutura: trata-se de reconhecer a água como elemento essencial da vida e da dignidade. Em meio às guerras, às mudanças climáticas e à desigualdade social, a água revela-se o ponto central de todas as crises — e também a base de todas as soluções.
Capa da matéria: Reprodução/Sanitation and Water for All
Ver 0 Comentários