No litoral do Ceará, a construção de uma ponte de 38 metros está no meio de uma grande polêmica. A Superintendência do Meio Ambiente do Ceará (Semace) autorizou que a Casa dos Ventos, empresa parceira do TikTok, construa a estrutura sobre uma área de proteção permanente (APP) no Lagamar do Cauípe, em Caucaia. O motivo? A suposta “utilidade pública” do empreendimento — um data center privado que promete consumir, em um único dia de operação, a mesma quantidade de energia que 2,2 milhões de brasileiros.
O parecer jurídico que liberou a intervenção foi assinado em 17 de outubro e representa o último passo antes da emissão da licença de instalação definitiva, que pode sair a qualquer momento. A decisão, no entanto, reacendeu protestos de moradores, indígenas e organizações ambientais, que acusam o governo estadual de contornar a legislação ambiental para favorecer gigantes da tecnologia.
O Ministério Público Federal (MPF) ainda não se manifestou oficialmente sobre o caso, mas há pressão crescente para que o órgão investigue se o licenciamento violou o Código Florestal — que restringe obras em áreas de preservação a projetos de comprovado interesse público.
Utilidade privada
O ponto mais contestado do processo é a forma como a Semace justificou a construção da ponte. Para o órgão, o data center seria uma infraestrutura de “utilidade pública” por estar dentro do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) e por se enquadrar como instalação de telecomunicações. O argumento se baseia em uma lei estadual de 2024 e em uma resolução da Anatel publicada em agosto.
Mas especialistas afirmam que o raciocínio não se sustenta. “Um data center não presta serviço público nem se destina à oferta de telecomunicações”, explicou Luã Cruz, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) ao Intercept Brasil. “O TikTok não é uma operadora como a Claro ou a Vivo, portanto não há base legal para considerar o empreendimento de utilidade pública”.
Planta do empreendimento mostra onde a ponte deve ficar.
Na prática, o parecer abre um precedente perigoso: o de que obras privadas de grande impacto ambiental podem ser enquadradas como de interesse público caso envolvam tecnologia ou infraestrutura digital. Ainda segundo o Intercept, o data center da Casa dos Ventos e do TikTok gastará mais energia que 99,9% das cidades brasileiras.
Além do consumo elétrico, há também a preocupação com a água usada no resfriamento dos equipamentos. Em uma região onde comunidades indígenas e rurais ainda dependem de caminhões-pipa e cisternas, o contraste é gritante: o governo garante recursos hídricos para as empresas, enquanto famílias locais seguem lutando para ter acesso básico à água.
Povos indígenas ignorados
Outro ponto crítico envolve o povo Anacé, que reivindica a área onde o data center será construído. Em agosto, representantes da comunidade protocolaram uma denúncia no MPF pedindo a suspensão imediata do licenciamento e alegando que o governo estadual descumpriu a Convenção 169 da OIT, que garante o direito à consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas afetados por grandes obras.
De acordo com o cacique Roberto Anacé, a consulta ainda não aconteceu — e só deve ocorrer após a emissão da licença. “Querem nos ouvir depois que tudo estiver decidido”, afirmou em reunião recente com o MPF.
Nos documentos oficiais, a Casa dos Ventos promete realizar “reuniões comunitárias” 60 dias após a liberação da licença. O objetivo seria “fortalecer a participação social” e “contribuir para a legitimidade social do empreendimento”. Mas, para as lideranças locais, essas palavras soam mais como um gesto simbólico do que um compromisso real.
Enquanto isso, as autoridades seguem em silêncio, com o ritmo acelerado do licenciamento indicando que a decisão já está tomada.
Créditos de imagens: Xataka Brasil via Perplexity e Reprodução.
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