Isso aconteceu nas guerras mundiais do século passado e voltou a acontecer na Ucrânia após a invasão da Rússia. Estamos falando da conversão de fábricas automotivas em plantas de produção militar, uma história que voltou a ser notícia há poucos meses na Alemanha, quando a poderosa Rheinmetall, maior contratante de defesa, começou a negociar com a própria Volkswagen para reconverter uma de suas fábricas em produtora de tanques. No entanto, a notícia que surgiu nas últimas horas é, talvez, ainda mais surpreendente.
A França não quer ficar para trás
A guerra na Ucrânia transformou, em apenas três anos, o drone de combate na arma tática mais influente do século 21, relegando muitas doutrinas tradicionais ao passado e forçando as potências europeias a se adaptarem a uma realidade bélica que se move por enxames invisíveis, inteligência artificial e manobras remotas. Nesse contexto, a França decidiu não ficar para trás.
O anúncio mais recente e surpreendente: a colaboração entre a Renault e uma pequena empresa francesa do setor de defesa para produzir drones de combate em solo ucraniano, um movimento que marca uma guinada radical na estratégia industrial de Paris. Como explicou o ministro da Defesa Sébastien Lecornu, trata-se de um acordo “ganha-ganha” com a Ucrânia, no qual o grupo automotivo se une a uma empresa especializada para estabelecer linhas de montagem dentro do país em guerra (as localizações exatas não foram reveladas por razões óbvias de segurança).
Também não foi especificado quais modelos serão produzidos, mas sabe-se que serão destinados tanto às Forças Armadas ucranianas quanto ao exército francês, que busca se treinar com sistemas desenvolvidos diretamente no ambiente operacional real.
Produção local com expertise ucraniana
A essência do acordo está não só na transferência física das linhas de montagem para a Ucrânia, mas na confiança explícita depositada na experiência dos técnicos, engenheiros e operadores ucranianos. Lecornu deixou isso claro: “Eles são melhores do que nós em projetar drones e, principalmente, em desenvolver a doutrina que os acompanha.” De fato, nenhum pessoal francês será enviado às fábricas: a produção será completamente nacional, em termos ucranianos, reforçando ao mesmo tempo a economia de guerra de Kiev e a capacidade de aprendizado militar da França.
Essa sinergia entre conhecimento tático em tempo real e capacidades industriais pesadas coloca a Ucrânia em uma posição central como polo de inovação bélica. O exemplo mais notório: a operação “SpiderWeb”, na qual drones escondidos em caminhões civis foram deslocados a milhares de quilômetros da fronteira para atacar aeródromos russos na Sibéria. Essas táticas, impossíveis de prever há apenas uma década, hoje são matéria-prima para a estratégia militar de todo o Ocidente.
A verdade é que a Renault não está tão distante do ambiente bélico. De fato, o famoso losango da empresa, hoje icônico e quase centenário, é uma parte fundamental dessa parceria. Fundada em 1898 pelos irmãos Louis, Marcel e Fernand Renault, a marca francesa inicialmente tinha um logo com dois R entrelaçados. Ao longo da história, o logo evoluiu: em 1906, um Renault AK vencedor do Grande Prêmio da França foi o protagonista, e, surpreendentemente, em 1919, o emblema passou a ser um tanque FT 17, uma homenagem à vitória aliada na Primeira Guerra Mundial e considerado o primeiro tanque moderno.
Esse tanque teve até presença em conflitos espanhóis como a Guerra do Rif e a Guerra Civil. Finalmente, em 1923, optou-se por um design que simulava a grade de um carro com a inscrição Renault e, dois anos depois, em 1925, apareceu o losango que, com redesenhos, se mantém até hoje.
Uma indústria europeia
A verdade é que a França não é a única potência que decidiu fabricar na Ucrânia. A tendência vem de longe: a Europa aposta em fazer do país invadido pela Rússia sua nova plataforma de defesa. A Finlândia já estabeleceu uma planta de produção de drones junto a parceiros locais e começará a produção em massa em 2025.
Os Países Baixos comprometeram 700 milhões de euros para essa indústria, o Reino Unido investirá centenas de milhões adicionais no próximo ano e a Noruega redirecionou fundos militares especificamente para o desenvolvimento e fabricação de drones ucranianos. Paralelamente, a OTAN decidiu institucionalizar esse impulso com um mecanismo específico de produção de armamento, anunciado na última cúpula de Ramstein. Sem dúvida, para a Ucrânia, que planeja fabricar mais de 4,5 milhões de drones até 2025, esses acordos representam uma fonte vital de recursos, tecnologia e legitimidade industrial.
França contra o relógio
Apesar de sua influência histórica em matéria militar, a França foi uma das grandes atrasadas na corrida tecnológica dos drones. Como reconheceu o general Jean-Paul Perruche, ex-diretor do Estado-Maior Militar da UE, o país já falava sobre drones nos anos 80, mas a falta de conflitos “importantes” fez com que o desenvolvimento estagnasse, enquanto os Estados Unidos, a China e até o Irã avançaram.
Hoje, o exército francês dispõe de cerca de 3.000 drones, um número modesto comparado ao projeto ucraniano de ter milhões nos próximos meses. Um dado para colocar em perspectiva: na linha de frente, 70% da destruição do equipamento russo já é atribuída a drones, não a tanques nem à artilharia clássica. A França, assim como outros aliados, está reconhecendo que a revolução não tripulada não é mais uma promessa do futuro, mas um presente incontestável.
A guerra como catalisadora
Em resumo, a França tomou a decisão de ser um ator principal na Ucrânia com uma colaboração que possui várias interpretações, tendo a figura simbólica da Renault na linha de frente. Esses laços entre uma das empresas automobilísticas mais históricas do planeta e a indústria militar não são apenas um exemplo de adaptação pragmática a um conflito prolongado: são também um sinal de que a economia de defesa do século 21 já não distingue entre civil e militar.
A aliança com a Ucrânia, baseada numa lógica de complementaridade (experiência em combate por parte de Kiev, capacidade industrial por parte de Paris), representa um novo modelo de cooperação europeia frente às ameaças híbridas e prolongadas. Enquanto o campo de batalha se digitaliza e o espaço aéreo se torna um enxame de sensores, munições e câmeras, o drone não é mais apenas um acessório, é a espinha dorsal da estratégia militar moderna.
Nesse cenário, a Ucrânia se posiciona como o laboratório experimental mais relevante do planeta, e a França (com a Renault) não quer perder esse trem.
Imagem | Wikimedia, RawPixel
Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.
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