O fim da guerra depende da linha de frente: quanto mais a Ucrânia recua, mais força a Rússia acredita ter para exigir concessões

Rascunho do acordo de paz deixa de fora a questão do território, que será decidida no solo

Fim da guerra / Imagem: Ministério da Defesa da Ucrânia, 7th Army Training Command
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Victor Bianchin

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Victor Bianchin é jornalista.

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O último movimento diplomático entre EUA e Ucrânia cristalizou em um rascunho de paz reduzido a 19 pontos que, segundo ambas as delegações, representa um avanço real em relação ao polêmico documento inicial de 28 pontos. Esse primeiro rascunho, escrito em grande parte com participação russa, cruzava diversas linhas vermelhas ucranianas e acendeu alertas por toda a Europa.

Do jeito que as coisas estão, a decisão final está nos pouco mais de 900 km que compõem a linha de frente.

A nova virada

Em Genebra, após horas de negociações tensas que quase naufragaram, a equipe liderada por Andriy Yermak conseguiu suavizar ou reformular a maior parte dos pontos mais problemáticos. O novo texto, descrito como um corpo “sólido” de convergência, integra garantias de segurança, compromissos econômicos e proteção de infraestrutura em um marco que já não é percebido como um ultimato, embora ainda esteja longe de resolver o núcleo mais explosivo: a questão territorial.

Esse ponto (a possibilidade de ceder porções do leste) foi explicitamente “colocado entre colchetes” para que seja decidido pelos presidentes Trump e Zelensky — um gesto que reconhece tanto a gravidade política do assunto quanto a impossibilidade legal de resolvê-lo sem um referendo nacional na Ucrânia. A revisão do rascunho também elimina elementos como a limitação das Forças Armadas ucranianas a 600.000 efetivos ou uma anistia total por crimes de guerra, mas preserva deliberadamente o maior impasse. Assim, embora a Casa Branca descreva o processo como “otimista”, a coração do acordo permanece suspensa em um equilíbrio desconfortável: avançar sem definir o ponto mais decisivo.

A batalha aérea

Paralelamente às negociações, uma reflexão estratégica percorre o debate: nenhum acordo sobreviverá se a Ucrânia não tiver garantias aéreas reais. Moscou demonstrou que sua forma mais rápida e eficaz de romper um cessar-fogo é violar o espaço aéreo com mísseis, drones, bombardeiros e caças. As cidades ucranianas estão há três anos sob ataques de longo alcance e coerção vinda do céu, e o país só evitou um colapso total graças a um mosaico improvisado de defesas antiaéreas ocidentais.

Na Forbes, analistas lembram que qualquer paz sustentável exige três pilares: uma rede integrada de defesa que conecte radares, baterias Patriot, NASAMS, IRIS-T e aviação em um quadro operacional comum; uma força aérea ucraniana modernizada, numerosa e capaz de manter patrulhas contínuas com F-16, Rafale ou Gripen equipados com radares AESA, mísseis de longo alcance e guerra eletrônica avançada; e uma presença visível de aliados operando a partir da Ucrânia ou dentro dela, semelhante ao Baltic Air Policing, para dissuadir violações e reagir sem ambiguidade diante de qualquer incursão.

Além disso, destaca-se que as regras de engajamento devem ser explícitas: interceptação imediata de aeronaves não autorizadas, derrubada de qualquer vetor que represente ameaça e represálias automáticas contra pontos de lançamento caso Moscou dispare mísseis após um acordo.

Sem essa arquitetura aérea, uma paz assinada no papel se transformaria em um parêntese frágil, exposto a uma Rússia que historicamente explora cada vazio e testa cada fronteira. A estabilidade do acordo futuro depende tanto do texto diplomático quanto do poder de fogo que sustente suas linhas.

O ponto que ninguém quer escrever

O que aconteceu em Genebra mostra que a diplomacia avança, mas também que avança mancando. Segundo o Financial Times, a reunião começou praticamente rompida: os estadunidenses, irritados com vazamentos prévios, chegaram tensos, e os ucranianos vieram desconfiados pelo viés pró-russo do esboço original. Foi necessária uma conversa longa, quase terapêutica, entre Yermak e a delegação estadunidense para aliviar a tensão.

Depois disso, ambas as partes revisaram ponto a ponto o rascunho, eliminaram o limite para as tropas, reescreveram a anistia e ajustaram definições-chave. Os europeus (Reino Unido, França, Alemanha, Itália e a UE) juntaram-se posteriormente para coordenar prioridades e sincronizar posições. As declarações posteriores refletem uma “atmosfera construtiva”, com Washington sob a pressão autoinfligida de apresentar o documento à Rússia o quanto antes.

Seja como for, nenhuma correção técnica pode resolver a ausência essencial: a impossibilidade de decidir naquela sala sobre o território. Segundo os negociadores ucranianos, eles não tinham mandato para ceder um único quilômetro, e a Constituição obriga a consultar a população. O próprio Kyslytsya admitiu que o que resta exige “decisões de liderança”, um eufemismo diplomático para admitir que o que é inaceitável para a Ucrânia foi adiado, não eliminado.

Os 900 km 

O rascunho de paz pode ter mudado, mas a realidade da frente muda ainda mais rápido. Enquanto os diplomatas escreviam, apagavam e reescreviam frases em Genebra, a Rússia intensificava sua ofensiva em vários setores: avanços ao norte de Huliaipole, pressão crescente em direção a Siversk e um cerco que pode se fechar em Pokrovsk e Myrnohrad. A linha de frente, com cerca de 900 quilômetros, tornou-se o árbitro silencioso da negociação: quanto mais a Ucrânia recua, mais força a Rússia acredita ter para exigir concessões; e quanto mais resiste, maior é a margem de Kiev para rejeitar qualquer cessão territorial.

A proposta estadunidense e russa vazada partia dessa premissa: pedir que a Ucrânia entregasse áreas que ainda controla antes que as perca. Zelensky, no entanto, reiterou que a Ucrânia “defenderá seu lar” e que aceitar amputações territoriais minaria não apenas sua legitimidade política, mas a própria possibilidade de uma paz duradoura.

O problema é que o relógio corre contra Kiev. Os avanços russos, embora extremamente custosos em homens e material, estão criando bolsões de vulnerabilidade e obrigando a Ucrânia a recuar reservas para tapar brechas.

E o que está em jogo nesses 900 quilômetros não é apenas território: é a capacidade da Ucrânia de chegar à mesa com uma posição de negociação que não equivalha a uma rendição escalonada. Cada quilômetro perdido no mapa altera o rascunho em Genebra mais do que qualquer parágrafo.

Entre o papel e o campo de batalha

O que emerge dessas três frentes (a diplomacia, o espaço aéreo e a linha de contato) é um quadro mais ou menos claro: o acordo de paz está mais próximo na forma, mas não no conteúdo. O texto de 19 pontos representa um avanço técnico indiscutível, mas depende de decisões presidenciais enormemente custosas. As garantias aéreas são a condição indispensável para que qualquer compromisso faça sentido, e a frente, com sua dinâmica brutal e imprevisível, será quem determinará finalmente se a Ucrânia pode negociar a partir da força ou da sobrevivência.

O rascunho, sem dúvida, se tornou mais apresentável, mas a questão-chave está longe de estar escrita: quem controla o quê quando chegar o dia da assinatura. E essa resposta não será decidida em Genebra, nem em Washington, nem sequer em Moscou. Está sendo decidida agora, minuto a minuto, nesses 900 quilômetros onde a Ucrânia tenta não perder o território que ainda sustenta sua capacidade de dizer “não” à divisão de seu país.

Imagem | Ministério da Defesa da Ucrânia, 7th Army Training Command

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.


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