"Parece loucura, mas é isso mesmo." A Apple queria aproveitar a mão de obra barata na China, mas, sem perceber, acabou ajudando o país a dominar o mercado global de carros elétricos

Apple China carros elétricos. Imagem: Xataka
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Sofia Bedeschi

Redatora

Jornalista com mais de 5 anos de experiência, gamer desde os 6 e criadora de comunidades desde os tempos do fã-clube da Beyoncé. Hoje, lidero uma rede gigante de mulheres apaixonadas por e-Sports. Amo escrever, pesquisar, criar narrativas que fazem sentido e perguntar “por quê?” até achar uma resposta boa (ou abrir mais perguntas ainda).

Sem querer, a Apple ajudou a transformar a China na líder mundial dos carros elétricos — e ainda a impulsionou ao topo como potência industrial.

“Parece completamente maluco, é verdade, mas foi exatamente isso que aconteceu”, admite Patrick McGee, ex-correspondente do Financial Times, em entrevista a Jon Stewart no The Daily Show.

No livro Apple in China, McGee explica como o famoso “Designed in California. Made in China” estampado nos iPhones acabou transformando a China em um verdadeiro gigante industrial. Ao buscar produção mais barata, a Apple educou o regime chinês, fez investimentos maiores do que vários Planos Marshall juntos, e, sem perceber, preparou o terreno para que o país liderasse as novas tecnologias — incluindo os carros elétricos.

A Apple investiu bilhões na China e ajudou a formar milhões de trabalhadores chineses

No início dos anos 2000, a Apple enfrentava um quebra-cabeça enorme para produzir o novo iMac G4, lançado em 2002. As peças do computador vinham de até seis países asiáticos diferentes. O processo era lento, caro e inviável para o novo projeto da empresa.

A partir dali, a Apple basicamente financiou e educou várias gerações, moldando o modelo industrial chinês no campo das novas tecnologias. A China tinha a base, uma mão de obra dócil que aceita trabalhar para cumprir prazos impossíveis. O que faltava, a Apple trouxe: o conhecimento.

“Depois de conversar com 200 pessoas, encontrei documentos internos que mostram que, em 2015, a Apple já investia 55 bilhões de dólares por ano na China.” Esse nível de investimento equivale a inundar o país com metade do valor do Plano Marshall a cada ano — aquele plano que durou de 1948 a 1952 para reconstruir a Europa. Entre 2016 e 2021, a Apple investiu cerca de 275 bilhões de dólares na China.

Esse mega Plano Marshall particular foi necessário para pagar toda a maquinaria, as ferramentas e a formação dos trabalhadores que fabricam os iPhones e outros produtos da Apple. A empresa de Cupertino não só paga terceiros para fabricar seus produtos, mas também banca as fábricas, as máquinas e a capacitação dos funcionários.

Essa generosidade é resultado da necessidade de controlar a produção, garantindo que tudo saia exatamente como imaginaram, em termos de qualidade, acabamento, prazos de entrega, e por aí vai.

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Entre 2016 e 2021, a Apple capacitou profissionalmente cerca de 28 milhões de pessoas na China, entre operários, engenheiros e gestores. É como se tivesse formado toda a população ativa da Espanha e de Portugal juntas. Essa quantidade supera até a força de trabalho total da Califórnia. E essa formação é algo que a Apple oferece desde o começo dos anos 2000.

Tudo ia bem para a Apple até chegar o Consumer Day de 2013, um evento que acontece todo 15 de março na China para apontar uma empresa estrangeira que trata mal o consumidor chinês. Em 2012 foi a vez do McDonald’s, mas em 2013 o alvo foi a Apple. Merecido ou não, o fato é que as vendas da Apple despencaram.

Para se recuperar, a marca precisava melhorar sua imagem. “Por que estamos no país e como mostramos que não somos um império explorador?”, eles pensaram. A resposta foi simples: “olhem tudo que estamos fazendo pela China”. Foi a própria Apple que comunicou seus investimentos em um esforço de construção nacional no país. E é real. Hoje, 55% do mercado mundial de smartphones é dominado por marcas chinesas como Oppo, Huawei e Xiaomi.

A Apple ensinou os futuros fabricantes de celulares como fazer um bom aparelho, compartilhou conhecimento e experiência na produção de baterias, tecnologias de precisão, fabricação de microchips e muito mais. Num mercado ultra competitivo como o chinês, o que mais esses fornecedores da Apple poderiam produzir, além de smartphones, para continuar crescendo e se diversificando?

Simples assim, praticamente qualquer coisa. Desde câmeras até drones, passando por televisores, instrumentos de precisão, armamento e, claro, carros elétricos, essas empresas foram abrindo seus mercados.

No fundo, um veículo elétrico não passa de um smartphone com rodas. E hoje, por exemplo, Xiaomi e Huawei, além de smartphones, televisores e aspiradores, também fabricam seus próprios carros elétricos.

A Apple investiu tanto na China que a indústria chinesa de alto valor agregado foi moldada seguindo o modelo dela. Tanto que a Tesla, quando abriu sua fábrica em Xangai, praticamente contratou só gente da Apple ou dos seus fornecedores para aplicar o mesmo método, garante McGee.

Claro que a Apple não é a única responsável, ela é uma empresa poderosa, mas não a maior no jogo todo. O resultado que vemos hoje também é fruto de uma visão de estado, iniciada por Deng Xiaoping nos anos 80 e acelerada por Xi Jinping desde que chegou ao poder. Num discurso em outubro de 1986, na Segunda Sessão Plenária do 20º Comitê Central do Partido Comunista, Deng avisou: “Mantemos nossas portas abertas, mas somos seletivos. Não introduzimos nada sem um propósito e um plano”.

Então, o que aconteceu com a Apple já tinha rolado antes no setor automotivo, só que numa escala de investimento bem menor comparado à empresa californiana. Em 1983, trinta anos depois da criação da primeira marca chinesa de carros, a FAW, que foi feita com ajuda da URSS, uma nova joint venture foi criada, dessa vez com um parceiro ocidental, a American Motors Company (AMC), e a chinesa BAIC.

A AMC investiu 16 milhões de dólares, metade disso em tecnologia de máquinas e equipamentos industriais. Com isso, começaram a fabricar o Jeep Cherokee XJ, que foi o primeiro modelo ocidental fabricado na China comunista. No ano seguinte, o Grupo Volkswagen fez parceria com a SAIC, atual dona da MG, e criaram uma joint venture chamada Volkswagen Shanghai.

O primeiro modelo produzido foi o Volkswagen Santana, que já não era mais vendido na Europa.

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Hoje, a rede da Volkswagen na China conta com 39 fábricas e 90 mil funcionários. “Junto com seus parceiros de joint venture, a Volkswagen é parte integral do ecossistema industrial chinês e criou uma base sólida”, lembram lá da Volkswagen.

Não é de se espantar, então, que a BAIC, fabricante do Volkswagen ID.3 na China, tenha lançado um modelo bem parecido com o ID.3: o MG 4. Não é que a MG tenha copiado o ID.3, é que na BAIC aprenderam com a Apple, Volkswagen e outras empresas estrangeiras como fazer esse tipo de produto.

Fomos pra China fabricar barato e acabamos ensinando como fazer as coisas. Agora, o aluno superou o mestre e quer sua fatia do bolo.

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