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O último ataque da Ucrânia à Rússia confirmou algo que já se suspeitava: a guerra deixou de ser uma questão geográfica

As capacidades tecnológicas atuais (drones de longo alcance, IA embarcada, sistemas de navegação autônoma) estão corroendo as barreiras geográficas

Ataques com drones comprovam: já não há mais fronteiras na guerra moderna / Imagens: farsnews.ir, Picrysl
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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

Aconteceu na última segunda-feira (2/6) e já é considerado pela maioria dos analistas como o golpe mais importante de Kiev desde o início do conflito. No entanto, para além do impacto que terá na guerra, o ataque sem precedentes de um enxame de drones ucranianos em território russo confirma algo que já se intuía quase desde o começo do conflito entre as duas nações: o fim da guerra localizada.

Golpes cirúrgicos à distância

A luta que acontece na Ucrânia mudou para sempre o conceito de guerra com o uso e a aparição de um novo ator: os drones (de baixo custo). Nesse sentido, embora ambos os lados tenham desenvolvido seus enxames, a Ucrânia, motivada pela falta de artilharia e recursos, se destacou como pioneira em muitos aspectos.

Na última operação, batizada de “Spiderweb”, mais de 40 aeronaves foram atingidas em diversas bases aéreas russas, incluindo bombardeiros estratégicos Tu-95 e Tu-22M3, assim como um dos poucos aviões de alerta antecipado A-50 que Moscou ainda possui.

A operação não apenas diminui de forma tangível a capacidade ofensiva russa, mas compromete sua frota de longo alcance, fundamental para os ataques de mísseis lançados de território russo além do alcance das defesas ucranianas. Contudo, o ataque “à distância” é apenas mais um episódio no histórico do conflito. A guerra deixou de ser uma questão puramente geográfica.

O coração da Marinha russa

De fato, paralelamente aos ataques aéreos, a Ucrânia também conseguiu causar em 2022 danos sérios à Frota do Mar Negro, uma fonte chave do orgulho e do poder naval da Rússia. Um exemplo particularmente simbólico foi o ataque que incendiou um cruzador lança-mísseis russo, também em 2022, cujas munições explodiram após um incêndio a bordo, forçando a evacuação da embarcação e causando graves danos estruturais.

Os analistas compararam a perda do navio ao afundamento de um couraçado americano na Segunda Guerra Mundial ou de um porta-aviões moderno. Pouco depois, no início de 2024, um enxame de drones navais impulsionados por motores de jet-skis destruiu o navio lança-mísseis Ivanovets. Imagens noturnas mostraram soldados russos disparando freneticamente enquanto ao menos dois drones atingiam o casco do navio, causando explosões massivas. Esses reveses marcaram uma sequência de derrotas navais para Moscou que minaram a capacidade operacional de sua frota no Mar Negro.

Ataque em Kerch

Outro dos golpes que exemplificam esta guerra “sem soldados nem fronteiras” foi o ataque à ponte de Kerch em julho de 2023, uma das infraestruturas mais simbólicas do domínio russo sobre a Crimeia. Inaugurada após a anexação da península em 2014 e construída por cerca de 3,7 bilhões de dólares, a ponte era essencial tanto para o abastecimento militar quanto para a vida cotidiana na Crimeia.

O SBU, em coordenação com a Marinha ucraniana, conseguiu bombardear a estrutura usando um drone marinho experimental. Embora Moscou tenha minimizado o impacto, admitiu a morte de dois civis e danos consideráveis nas pistas de veículos. O ataque, além de suas consequências práticas, foi um golpe direto ao prestígio pessoal de Putin, que havia promovido pessoalmente o projeto como símbolo de integração. Há algumas semanas, outra ação inédita marcou a história bélica: a primeira lancha não tripulada a lançar mísseis e derrubar um caça russo.

Da Ucrânia para o resto do mundo

A guerra na Ucrânia, portanto, se tornou o maior laboratório contemporâneo do combate não tripulado. Desde drones FPV lançando minas até motos aquáticas suicidas, a cada dia novas estratégias são testadas. O impacto não é apenas tático: a visibilidade desses sistemas e seu baixo custo aceleraram a corrida global para dominá-los.

Em Nagorno-Karabakh, por exemplo, os drones turcos permitiram que o Azerbaijão obtivesse uma vitória decisiva sem superioridade terrestre. Os Estados Unidos, por sua vez, impulsionam frotas de USVs (veículos de superfície não tripulados) sob sua iniciativa Ghost Fleet, enquanto a China implementa navios-mãe para enxames marítimos não tripulados, como o Zhu Hai Yun. A Rússia aposta em UUVs (veículos subaquáticos não tripulados) para minagem encoberta e inteligência no Mar Negro. Todos esses atores compartilham um objetivo: reduzir o risco humano e aumentar o alcance estratégico sem escalar conflitos de forma visível, porque já não há fronteiras.

O que vem por aí: IA

Diante das limitações impostas pela guerra eletrônica, a evolução natural aponta para o uso em massa de drones equipados com inteligência artificial, capazes de identificar e fixar alvos sem necessidade de comunicação direta com um operador. Esses UAVs não podem ser interferidos, porque não dependem de sinais externos.

Embora seu uso ainda seja limitado, pilotos e fabricantes concordam que eles representam o futuro imediato da guerra aérea. A possibilidade de que a proteção eletrônica se torne tão avançada a ponto de tornar obsoletos os drones FPV convencionais impulsiona uma corrida para desenvolver IA tática capaz de guiar enxames de drones com autonomia plena. Sob essa perspectiva, os drones não serão apenas mais precisos, mas também mais difíceis de rastrear, mais rápidos na reação e menos vulneráveis à desativação remota.

Muitas das operações realizadas na guerra da Ucrânia demonstraram que não existem mais zonas seguras dentro das fronteiras de um país em guerra. Na operação Spiderweb, os drones FPV ucranianos foram transportados em caminhões camuflados como casas móveis, atravessaram milhares de quilômetros de território russo e foram lançados a poucos metros de bases estratégicas como Belaya e Olenya, destruindo ou danificando mais de 40 bombardeiros.

Esses ataques não foram apenas taticamente bem-sucedidos, mas romperam a noção de profundidade estratégica: até áreas como a Sibéria ou a península de Kola (consideradas, durante décadas, inexpugnáveis) ficaram ao alcance de armamentos improvisados e econômicos. A operação, portanto, marca uma transformação radical na guerra moderna: a retaguarda deixou de existir.

Nenhuma nação é invulnerável

O fenômeno, além disso, não é exclusivo da Rússia. Conforme relatado pelo The Wall Street Journal, as capacidades tecnológicas atuais (drones de longo alcance, IA embarcada, sistemas de navegação autônoma) estão erodindo as barreiras geográficas tradicionais. Estados Unidos, China, Irã e Turquia estão desenvolvendo enxames de drones que podem ser lançados a partir de plataformas civis, submarinas ou terrestres, sem depender de operadores em tempo real.

Em resumo, a guerra, tal como era concebida em termos de frentes delimitadas e “zonas de combate”, se dissolve diante de sistemas móveis, precisos e de baixo custo que podem infiltrar qualquer ponto do território inimigo. Isso implica que, em futuros conflitos, desde o Indo-Pacífico até o Oriente Médio, nenhuma infraestrutura crítica (por mais remota ou protegida que esteja) estará fora do alcance.

Assim, a guerra não se luta mais apenas na linha de frente: agora, todo o país é a linha de frente.

Imagem | farsnews.ir, Picrysl

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.

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