A Europa percebeu que a Geração Z está no auge do militarismo, do culto ao corpo e da vontade de se divertir, e disse-lhes: para a frente!

  • O militarismo de baixa intensidade agora tem um uniforme: fatos de treino, relógios inteligentes e disciplina;

  • A solidão é praticada em grupo: desde o autocuidado à doutrinação sutil

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Fabrício Mainenti

Redator

Primeiro vieram os tênis técnicos, depois os relógios esportivos e agora as mochilas militares: cáqui, robustas, cobertas de patches e alças. A Europa está se vestindo de utilidade, como se a preparação para a guerra fosse apenas mais uma tendência estética. Nas academias, mais do que nos quartéis, um novo tipo de cidadão está sendo treinado: corpos prontos, olhos focados, mochilas preparadas para algo que ainda não sabemos se é uma declaração de moda ou uma vocação.

Aqueles que as usam parecem personificar uma nova tendência europeia: o retorno do corpo como símbolo patriótico. Algumas semanas atrás, o Secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, declarou: "É cansativo ver tropas obesas". Seu comentário — tão provocativo quanto político — coincidiu com uma descoberta inesperada: a Geração Z, a mesma geração que cresceu cercada por telas e ansiedade, está redescobrindo o culto ao corpo, o gosto pela ação e, em alguns casos, uma curiosidade renovada sobre a ideia de servir ou proteger algo maior do que si mesmos. A Europa percebeu isso.

Aliste-se na marinha?

Em um episódio de 'Os Simpsons', Bart e seus amigos formaram uma banda com letras subliminares para incentivar jovens a se alistarem na marinha. Uma piada que, com o tempo, se tornou mais uma profecia da cultura pop cumprida.

Uma coluna no Financial Times começou a desvendar a nova tendência militar. As forças armadas europeias detectaram uma mudança inesperada: jovens que antes evitavam o serviço militar obrigatório, agora estão se inscrevendo para o serviço militar ou voluntário civil. Na Alemanha, as inscrições para o serviço militar voluntário aumentaram 15% em um ano; na Finlândia, o governo anunciou sua intenção de aumentar o número de reservistas para um milhão até 2031.

Enquanto isso, a Suécia, com seu sistema de "Defesa Total" (Totalförsvaret), já integra 380 mil cidadãos em associações de rádio, transporte e treinamento canino que apoiam o exército sem portar armas. De acordo com dados oficiais do governo sueco, a guerra na Ucrânia causou um aumento repentino nas inscrições de voluntários: em apenas alguns meses, o país recebeu tantos voluntários quanto em um ano típico.

Enquanto isso, os países bálticos — Estônia, Letônia e Lituânia — também estão reforçando seu “militarismo civil”. Os três países estão preparando planos de evacuação em massa e de resposta cidadã para o caso de um ataque russo. Os exercícios incluem desde voluntários de logística até agricultores aprendendo a dirigir veículos blindados leves. Além disso, a Estônia criou unidades de "cibervoluntários" para proteger a infraestrutura digital, e a Lituânia acaba de lançar um programa para treinar 22 mil operadores de drones.

A Europa não está construindo exércitos enormes: está cultivando corpos disponíveis, disciplinados e funcionais. Um militarismo de baixa intensidade que combina exercícios na academia, voluntariado e “patriotismo saudável”.

Mas por que a Geração Z?

A resposta mais simples é que eles são moldados pelo espelho, mas há muito mais do que isso. Atualmente, vivemos na era da proteína em alta, shakes fortificados, corpos esculpidos e rotinas de exercícios extremas. A psicóloga Sara Bolo alertou que “muitos comportamentos aparentemente saudáveis ​​escondem transtornos disfarçados de cultura fitness”. Mas, para além dos excessos, o culto ao corpo tornou-se uma ética: a autodisciplina física como sentido de propósito.

E por trás de tudo isso, há algo mais: 36% dos europeus da Geração Z praticam exercício físico regularmente, e outros 50% querem começar. No entanto, a estatística mais reveladora não é essa, mas sim o vazio que preenche. O sociólogo Robert Putnam já diagnosticou que “deixamos de jogar boliche juntos”. Hoje, a academia substitui o clube social, o bootcamp substitui o acampamento de verão e o levantamento de peso substitui o ritual coletivo.

Em outras palavras, a Geração Z não está apenas em busca de músculos: está em busca de pertencimento. Numa Europa onde 13% dos cidadãos e 20% dos jovens dizem sentir-se sozinhos “na maior parte do tempo”, segundo o Eurostat, a defesa civil emerge como um novo tipo de comunidade funcional: uma academia com um hino e um propósito.

O corpo como fronteira política

Este culto ao corpo, nascido nas academias e amplificado pelas redes sociais, também se infiltrou no discurso institucional. O que antes era bem-estar individual, agora assume um tom coletivo, até mesmo patriótico. Do outro lado do Atlântico, essa obsessão com o corpo adquiriu conotações ideológicas

O próprio Hegseth reuniu centenas de oficiais de alta patente para repreendê-los: “Chega de barbas. Vamos cortar o cabelo, raspar a barba e voltar aos padrões”. Seu discurso focava mais na aparência do que no desempenho, mais na imagem do soldado ideal do que em suas capacidades operacionais.

A Europa observa com cautela, mas o impulso permanece o mesmo: o corpo é, mais uma vez, uma metáfora para a nação, um espaço onde se projeta a saúde moral e física do Estado. Treinados, vigilantes, preparados.

Recrutamento com algoritmos

Por ora, o velho continente está fortalecendo sua rede de associações civis. Mas, se olhar para os Estados Unidos, poderá encontrar um modelo de recrutamento mais agressivo. O exército americano contratou garotas da internet e influenciadoras como Hailey Lujan, funcionária da divisão de Operações Psicológicas (PSYOP), que combina uniformes e filtros de beleza para atrair novos recrutas. 

Por outro lado, o Pentágono também experimentou com videogames: America’s Army, um jogo de tiro gratuito lançado em 2002, projetado para fazer com que os jogadores quisessem se alistar após jogarem. Funcionou por duas décadas como a primeira grande ferramenta de recrutamento "gamificada".

Por ora, a versão europeia do recrutamento digital é mais discreta — campanhas focadas em voluntariado e proteção civil — mas a lógica é idêntica: convencer a Geração Z de que um uniforme também pode ser um estilo de vida.

Fragilidade disfarçada de força

À margem das academias, onde disciplina e autoaperfeiçoamento são pregados, uma "manosfera" digital prospera, transformando a fragilidade em combustível ideológico. No TikTok e no YouTube, figuras como Andrew Tate ou contas anônimas com estética militar promovem uma masculinidade “baseada em força e controle”.

O fitness tornou-se uma porta de entrada para a extrema-direita digital, onde o corpo simboliza pureza e o inimigo é sempre o fraco. Casos como o do influenciador espanhol Llados, que combina treinamento físico com discursos sobre “masculinidade tradicional”, ilustram essa linha tênue entre autoaperfeiçoamento e manipulação emocional.

O risco não é apenas a militarização do corpo, mas sua instrumentalização ideológica. A academia, um espaço de redenção, pode se tornar um campo de doutrinação sutil, onde a solidão e a ansiedade são canalizadas para a obediência e a disciplina.

As guerras invisíveis

Vale lembrar que o corpo treinado nem sempre retorna ileso. Em "Os Meninos de Zinco", Svetlana Alexievich reuniu os depoimentos de soldados soviéticos que voltaram do Afeganistão com feridas invisíveis na pele: "Os meninos envelheceram em questão de meses". A epopeia havia enferrujado.

Na Espanha, veteranos do Iraque, da Bósnia ou do Afeganistão ainda falam da perplexidade de retornar a um país que os tratava com indiferença. Para muitos, a verdadeira batalha começou com o retorno: depressão, isolamento, a sensação de terem sido usados ​​para a causa de outros.

Essa memória recente deve servir de alerta: não há proteína que possa curar o vazio do combate, nem academia que possa treinar para o barulho de uma guerra real. O entusiasmo juvenil pela disciplina e pela comunidade não deve ser confundido com a disposição para matar, muito menos para morrer.

A Espanha observa atentamente

Neste país, o debate sobre o serviço militar obrigatório permanece encerrado, mas o Ministério da Defesa começou a fortalecer sua "reserva voluntária", e a Unidade Militar de Emergência (UME) já funciona como um modelo de defesa civil robusta: 3.500 militares e milhares de colaboradores civis.

Nos bastidores, algumas universidades começam a oferecer seminários sobre "resiliência nacional", e diversos governos regionais promovem programas de voluntariado em proteção civil, segurança cibernética e resposta a emergências. Em outras palavras, uma versão ibérica do modelo nórdico.

Para onde isso nos leva?

À primeira vista, a Europa não está construindo exércitos massivos, mas sim estruturas sociais disciplinadas. O risco é que a linha entre dever cívico e militarismo se torne tênue até desaparecer. O que começou como um culto ao corpo pode acabar se tornando um culto à ordem.

A Geração Z, em meio a proteínas e drones, não declarou guerra a ninguém, mas decidiu se preparar para algo. A questão não é se ela está pronta para defender a Europa, mas que tipo de Europa ela está se preparando para defender.

Imagem de capa | Unsplash

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