A cidade mais pacifista da Alemanha vivia de fabricar trens. Agora, viverá de uma gigantesca fábrica de tanques

A antiga fábrica de Görlitz, com seus galpões escurecidos por décadas de trabalho metalúrgico, simboliza a mudança pela qual a Europa está passando

Tanques na Alemanha / Imagem: Imagem | Norwegian Armed Forces, Ministério Estadual de Assuntos Econômicos, Trabalho, Energia e Proteção Climática
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Victor Bianchin

Redator
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Victor Bianchin é jornalista.

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Durante mais de um século e meio, a cidade de Görlitz, na fronteira oriental da Alemanha, viveu ao som rítmico dos trens. As fábricas de vagões e locomotivas deram emprego a gerações inteiras e definiram a identidade dessa região operária do antigo Leste. Mas essa era está chegando ao fim. Após 176 anos de produção ferroviária, o histórico complexo industrial da Alstom está sendo convertido pelo consórcio armamentista KNDS para fabricar componentes dos tanques Leopard II e dos veículos blindados Puma.

O que antes foi símbolo de mobilidade civil e reconstrução hoje se transforma em engrenagem da máquina militar alemã. Essa metamorfose, é claro, não surge do nada: ela responde à guinada estratégica do país rumo ao rearmamento, motivada pela invasão russa da Ucrânia, pelo temor de um recuo das garantias de segurança dos EUA e por uma economia em declínio que busca desesperadamente novas fontes de emprego.

Entre o pacifismo e a necessidade

O New York Times conta que, em Görlitz, a reconversão industrial divide opiniões. A população, envelhecida e castigada por décadas de desindustrialização desde a reunificação, vê na produção de tanques um mal menor.

Nessa região onde o partido de ultradireita AfD (abertamente pró-Rússia e contrário a ajudar a Ucrânia) concentra quase metade dos votos, até mesmo os líderes locais aceitaram com resignação a mudança. “Não é motivo de comemoração, mas também não podemos nos opor à criação de empregos”, reconhecem, cientes de que a perda do trabalho seria ainda mais devastadora do que o dilema moral de fabricar armas.

Tanques

A fábrica, que chegou a ter mais de 2.000 empregados, mantinha apenas 700 antes da venda, e a KNDS se comprometeu a conservar metade deles, com planos de multiplicar esse número no futuro. Na verdade, os sindicatos, liderados pela IG Metall, foram os que promoveram a ideia de reorientar a planta para o setor de defesa a fim de evitar seu fechamento definitivo. Em uma região marcada pelo êxodo juvenil e pela frustração econômica, a indústria armamentista acabou oferecendo algo parecido com uma segunda chance.

Reindustrialização militar alemã

O caso de Görlitz reflete um fenômeno mais amplo: o rearmamento alemão como motor de uma nova reconversão industrial. Desde 2020, os gastos com defesa em Berlim aumentaram cerca de 80%, ultrapassando 90 bilhões de euros, e a demanda por mão de obra especializada disparou.

Empresas como Rheinmetall, Diehl Defence, Thyssenkrupp Marine Systems e MBDA contrataram mais de 16.000 trabalhadores desde o início da guerra na Ucrânia e planejam recrutar mais 12.000 até 2026. Os lucros do setor são tão elevados que seus diretores aumentam dividendos enquanto avaliam a compra de fábricas automotivas em declínio, como a da Volkswagen em Osnabrück.

A mensagem do CEO Armin Papperger resume a lógica da nova economia de defesa: se o dinheiro dos contribuintes financia a segurança nacional, os empregos devem permanecer na Alemanha. Nesse contexto, a reconversão de fábricas como a de Görlitz é vista como uma política industrial com duplo objetivo: sustentar o tecido produtivo e fortalecer a autonomia estratégica do país.

Apesar do alívio econômico trazido pelo renascimento do setor armamentista, persiste na sociedade alemã uma tensão profunda entre o pacifismo herdado do pós-guerra e a necessidade de garantir a defesa europeia. Para muitos alemães do Leste, que já vivenciaram uma primeira desindustrialização após a queda do Muro e agora sofrem com a perda de empregos na energia e na manufatura, fabricar tanques é uma amarga forma de sobrevivência.

Alguns temem que as armas produzidas acabem na linha de frente na Ucrânia; outros, que o crescimento do setor dependa da continuidade da guerra. “Será sustentável fabricar tanques? Tomara que não. Tomara que as guerras terminem em breve”, admitiu ao Financial Times um representante sindical. No entanto, a realidade do mercado e da geopolítica aponta em outra direção: a defesa se tornou o novo eixo industrial europeu e a Alemanha (pela história, capacidade tecnológica e pressão dos aliados) lidera essa transição.

Adeus trem, olá tanque

Assim, a antiga fábrica de Görlitz, com seus galpões escurecidos por décadas de trabalho metalúrgico, simboliza a mudança de época que atravessa a Europa. Onde antes se soldavam vagões para transportar passageiros, agora serão montadas blindagens de aço para veículos de combate. O que começou como uma estratégia para salvar empregos ameaça redefinir a alma industrial do país: do engenho civil ao poder militar, do aço que unia continentes ao que agora os protege.

E um profundo paradoxo: em um cenário político fragmentado onde o medo da guerra convive com a necessidade de prosperar, os trabalhadores do Leste alemão voltam a ser protagonistas involuntários da história. Seu destino, entre a nostalgia pelos trens e a aceitação pragmática dos tanques ou veículos de combate, resume o dilema de uma nação que tenta reconciliar seu passado pacifista com um presente que a empurra, mais uma vez, a fabricar armas para assegurar seu futuro.

Imagem | Norwegian Armed Forces, Ministério Estadual de Assuntos Econômicos, Trabalho, Energia e Proteção Climática

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.


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