O grande paradoxo da energia solar: quanto mais barata ela é, mais colapsa a rede global de eletricidade

A Europa terá que investir entre 65 e 100 bilhões de euros por ano para modernizar sua infraestrutura

Quanto mais pessoas não dependem da rede elétrica, mais cara fica a tarifa / Imagem: U.S. Department of Energy
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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

Em 1812, um alemão chamado Frederick Winsor fundou em Londres a Gas Light and Coke Company. Sua proposta era abastecer múltiplas casas com gás de forma centralizada, em vez de cada uma ter que comprar e queimar seu próprio carvão ou lenha. Foi assim que nasceram os serviços públicos, que hoje enfrentam sua maior transformação em dois séculos por causa das energias renováveis.

Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), atualmente existem 80 milhões de quilômetros de redes elétricas no mundo. Para 2040, serão necessários mais 50 milhões de quilômetros, além da urgente necessidade de modernizar outros 30 milhões de quilômetros da rede atual.

O desafio não é apenas de quantidade: não basta multiplicar o cabeamento elétrico. A energia eólica, e especialmente a solar, introduziram a necessidade de digitalizar toda a infraestrutura, inserir sistemas de controle e melhorar sua flexibilidade para lidar com a natureza intermitente das renováveis.

O paradoxo da energia solar

Quanto mais acessíveis ficam os painéis fotovoltaicos, mais usuários optam por abandonar parcialmente a rede elétrica. Isso encarece o custo para quem permanece conectado e coloca em risco a estabilidade do sistema, que precisa urgentemente de uma modernização profunda.

Em regiões ricas e ensolaradas como Califórnia e Austrália, o autoconsumo quase colapsou a rede em dias de alta geração solar. Mas não é preciso ir aos lugares mais desenvolvidos do mundo para encontrar esse tipo de problema. Uma reportagem da The Economist destaca três casos inesperados:

  • No Paquistão, terceiro maior importador de painéis solares chineses (segundo dados de 2023), empresas, agricultores e grandes consumidores estão instalando sistemas fotovoltaicos para se autossustentar e deixar de pagar contas de energia altíssimas. O preço da eletricidade no Paquistão (país ainda dependente de antigas usinas de carvão) é muito alto, então os usuários com recursos preferiram investir em energia solar.
  • Na África do Sul, vive-se outra variante desse paradoxo. Diante dos cortes de luz massivos da estatal Eskom (conhecidos como “load shedding”), muitos usuários instalam painéis solares e baterias para se proteger das interrupções. Os municípios sul-africanos que compram energia da Eskom para revender precisam pagar contas cada vez maiores e, ao mesmo tempo, cobrar menos de quem migra para o autoconsumo. Isso gerou uma dívida com a Eskom de cerca de 1,2% do PIB do país. A adoção da energia solar alivia a dependência da rede, mas, ao mesmo tempo, ameaça a receita que mantém a infraestrutura.
  • No Líbano, a estatal fornece eletricidade por apenas algumas horas diárias desde 2019. Como consequência, as instalações fotovoltaicas em telhados se multiplicaram, passando de 100 para 1.300 megawatts em apenas três anos. Essa situação, apesar de resolver parcialmente o desabastecimento, virou uma espécie de ciclo vicioso pela falta de estabilidade e investimentos na rede.

Uma brecha aberta

À medida que as instalações solares privadas se multiplicam, os custos fixos da rede (linhas, subestações, etc.) ficam a cargo de uma base menor de usuários conectados. As pessoas que não têm recursos para instalar painéis (geralmente os mais pobres) acabam pagando tarifas ainda mais altas para cobrir todas as despesas do sistema, que normalmente busca a rentabilidade.

A Europa está na liderança mundial em metas de emissões e eletrificação, mas isso traz implicações econômicas importantes. Segundo um relatório da Bruegel, serão necessários entre 65 e 100 bilhões de euros anuais para modernizar e ampliar a infraestrutura elétrica europeia, especialmente nas redes de distribuição.

Ao mesmo tempo, a União Europeia promove o autoconsumo solar e nem sempre estabelece mecanismos tarifários sustentáveis para a rede. Se muitas residências se desconectam ou reduzem drasticamente o consumo da rede elétrica, a base de usuários sobre a qual se recupera o custo dos investimentos em infraestrutura diminui, encarecendo a tarifa fixa da conta e afastando mais consumidores, que investem em mais painéis solares.

Conexões internacionais

A energia solar em si não causa apagões instantâneos, mas desequilibra a estrutura financeira e operacional da rede elétrica, que tem custos fixos de manutenção. Isso acontece por várias razões: a base decrescente de usuários, os desajustes entre oferta e demanda devido à intermitência das renováveis e o uso da rede como reserva a custo mínimo.

Além de baterias e usinas de bombeamento para estabilizar a rede, são necessários projetos internacionais, como o hipotético cabo transatlântico entre América e Europa para compartilhar excedentes renováveis entre continentes e suavizar os picos de demanda. Mas seu desenvolvimento é complexo, polêmico e bastante caro.

Imagem: U.S. Department of Energy

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.

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