Tendências do dia

Uma ideia inquietante começa a ganhar força na França e na Alemanha: o estado de bem-estar social deixou de ser sustentável

A sustentabilidade do “modo de vida” da Europa já não é mais um dogma incontestável

França em crise / Imagem: Pexels, Martin Greslou
Sem comentários Facebook Twitter Flipboard E-mail
victor-bianchin

Victor Bianchin

Redator
victor-bianchin

Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

1259 publicaciones de Victor Bianchin

A Europa se gabou por décadas de ter encontrado a fórmula perfeita para conciliar prosperidade econômica com justiça social: hospitais abertos a todos, universidades acessíveis e aposentadorias dignas após uma vida de trabalho. Esse pacto entre gerações, invejado do outro lado do Atlântico, tornou-se a marca de identidade do continente. E, ainda assim, hoje, as fissuras começam a se tornar visíveis.

E um de seus pilares está vacilando: a França.

Um preço alto demais

Como relatou esta semana o Washington Post, a Europa vive uma encruzilhada histórica: o modelo social que por décadas garantiu saúde universal, educação acessível e aposentadorias dignas começa a mostrar fissuras que já não podem ser escondidas. A França é o epicentro dessa tensão. Lá, a dívida pública descontrolada, a paralisia política e a sucessão de primeiros-ministros que caíram em apenas quinze meses evidenciam um desgaste profundo.

O país gasta mais do que qualquer outra nação rica em proteção social, mas esse gasto parece insustentável em um contexto de baixo crescimento e crescente polarização. A recente renúncia do primeiro-ministro Sébastien Lecornu, incapaz de negociar um ajuste orçamentário, resume o dilema: cortar drasticamente ou manter um bem-estar cada vez mais difícil de sustentar em um país onde a população continua a considerar esses direitos como inalienáveis.

E há mais: na França, as novas gerações sentem que herdam um sistema que não conseguirão sustentar. O Post relatou casos de jovens como Anastasia Blay, que dependem de subsídios intermitentes para sobreviver, convencidos de que não devem arcar com os erros do passado nem abrir mão de uma vida digna.

Diante deles, aposentados como Christine Boucau-Podorski defendem as pensões conquistadas após décadas de trabalho árduo e estão dispostos a sacrifícios limitados, mas não a perder direitos adquiridos. Essa disputa entre jovens e idosos reflete o choque intergeracional que atravessa toda a Europa: quem paga a conta, quais benefícios devem ser preservados e até que ponto a solidariedade entre gerações pode continuar sendo a base do contrato social europeu.

Alemanha e França vacilam

A fragilidade não se limita à França. A Alemanha, outro grande pilar histórico da União Europeia, enfrenta recessão industrial, deterioração das infraestruturas e um governo que já admite que “o sistema atual é insustentável”. As tensões políticas são intensas, com a oposição social-democrata se recusando a aceitar cortes drásticos e a extrema-direita capitalizando o descontentamento popular.

Franca

Enquanto isso, os partidos ultraconservadores crescem em ambos os lados do Reno, alimentados pelo desencanto social e pela sensação de estagnação. O curioso é que Itália e Espanha, antes considerados pontos fracos no continente, exibem hoje maior estabilidade macroeconômica do que as locomotivas europeias. O centro, antes garantidor do equilíbrio, tornou-se a área de maior incerteza, enfraquecendo o projeto europeu em um momento de ameaças externas crescentes.

É bastante notável que países historicamente vistos como frágeis, como Espanha e Itália, hoje apareçam (ou pareçam) relativamente mais estáveis. A Itália, após décadas de instabilidade política, vive seu período mais sólido com um governo controverso que conseguiu até mesmo uma melhoria na classificação de crédito.

A Espanha, por sua vez, reduziu pela metade o desemprego na última década e mantém um crescimento acima da média europeia, apesar de gastar menos em bem-estar do que França ou Alemanha. Essa inversão de papéis mostra até que ponto os clichês sobre a Europa do Sul ficaram ultrapassados: as nações mediterrâneas, antes acusadas de permissividade fiscal, parecem ter aprendido a lidar com a austeridade, enquanto “o norte rico” afunda em sua própria rigidez orçamentária.

A tempestade perfeita

O desafio se agrava por fatores externos que multiplicam as pressões internas. A invasão russa à Ucrânia leva a um aumento nos gastos com defesa, justamente quando os cofres públicos já estão exaustos. A China compete ferozmente com a indústria europeia, desde carros elétricos até energia nuclear, corroendo a posição internacional das manufaturas alemãs e francesas.

E os EUA, longe de oferecer segurança, adicionam incerteza com um presidente que muda de posição em questão de dias e ameaça impor tarifas aos próprios aliados. A Europa precisa decidir se prioriza proteger seu Estado de bem-estar, redirecionar recursos para a segurança militar ou encontrar um equilíbrio que não sacrifique nem a competitividade global nem a coesão social.

Especialistas como Andreas Eisl afirmam que o dilema é, acima de tudo, político: não se trata de saber se a Europa pode manter seu modelo social, mas até que ponto quer fazê-lo e quais sacrifícios está disposta a assumir. Tentativas de aplicar cortes, como os 44 bilhões de euros propostos no orçamento que derrubaram o primeiro-ministro François Bayrou, provocaram rejeição massiva nas ruas e alimentaram a polarização.

Ainda assim, a matemática é implacável: com uma população envelhecida, uma taxa de natalidade em declínio e resistência crescente à imigração, a base fiscal se estreita enquanto as necessidades aumentam. A Europa pode não estar à beira de um colapso ao estilo grego — ou pelo menos não parece —, mas seu “modo de vida” deixou de ser um dogma incontestável. E essa é, talvez, a verdadeira batalha do futuro: se o velho continente conseguirá reinventar seu contrato social sem destruí-lo no processo.

Imagem | Pexels, Martin Greslou

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.


Inicio