A cena ocorreu há uma década em uma estação polonesa, quando vários veículos blindados Bradley americanos perderam suas torretas ao passarem sob uma plataforma muito baixa, revelando um problema que a Europa nunca resolveu: a vulnerabilidade estrutural de sua rede logística militar. Num continente que se rearmou a uma velocidade sem precedentes desde a Guerra Fria, as deficiências não se manifestam apenas na falta de mais tanques, munições ou brigadas inteiras, mas também na incapacidade física de os deslocar a tempo.
Fragilidade oculta
A Europa percebeu que o rearme tinha de começar pelas estradas, sob uma premissa muito simples: uma invasão russa desencadearia um congestionamento fatal, como a invasão da Ucrânia em 2022 já expôs. A França não conseguiu deslocar os seus tanques Leclerc para a Romênia pela rota terrestre mais curta através da Alemanha e foi obrigada a enviá-los por mar, um desvio que evidenciou o que os estrategistas militares apontam com frustração há anos: a Europa não está preparada para deslocar um exército moderno dos seus portos ocidentais até à fronteira oriental num prazo razoável para fins de dissuasão.
Agora, além disso, a certeza de um número: a dissuasão leva cerca de 45 dias e, em um cenário real, isso seria equivalente a perder uma guerra antes mesmo de chegar à linha de frente, portanto, é imprescindível reduzir esse tempo. Quanto? O plano é reduzi-lo para cinco ou até três dias, de acordo com os objetivos que Bruxelas está finalizando. Esse é o cerne do problema que preocupa o general alemão Alexander Sollfrank: que tudo, da documentação à resistência a túneis e à disponibilidade de um mecânico, funcione “como um relógio suíço” quando Moscou testar a capacidade de reação da OTAN.
Desafio político
O Financial Times lembrou que, mesmo antes do primeiro trem blindado cruzar a Europa, o obstáculo crucial é político. A experiência de 2022 mostrou que, embora a inteligência americana tenha alertado com precisão sobre o iminente ataque russo, alguns líderes europeus não acreditaram que Putin daria a ordem.
A mobilização militar só pode começar quando os governos aceitarem que a ameaça é real e que o atraso (horas ou dias) é ouro para o agressor. O general Ben Hodges, ex-comandante das forças americanas na Europa, formulou a questão de forma contundente: a chave não é apenas como movimentar tropas, mas como acelerar a tomada de decisões, abrir centros de vacinação, ativar comboios e fazer tudo isso antes que a Rússia lance sua ofensiva.
Soma-se a isso a incerteza estratégica de Donald Trump, cujo histórico de oscilações contra a Rússia mantém a Europa em constante tensão: mesmo que Washington afirme manter-se comprometido com o Artigo 5, clareza, sincronia e rapidez podem ser condicionadas por sua postura.
Somente quando essa decisão política for tomada é que o movimento maciço em direção ao leste terá início, um fluxo cuja magnitude (200 mil soldados e milhares de veículos blindados dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido) exige uma precisão continental sem precedentes.
Geografia como inimiga
Dito isso, quase todos os analistas concordam: o verdadeiro gargalo da defesa europeia está no seu mapa físico. A Europa, apesar de ser um continente densamente desenvolvido, não foi projetada para transportar divisões pesadas de um extremo a outro. Os túneis são muito baixos, as estradas muito estreitas, as rodovias do Báltico incompatíveis com as do resto do continente, as pontes (como a Carola, em Dresden, que desabou em 2024) muito antigas para suportar o peso de um tanque de guerra moderno.
Até mesmo a inclinação da linha férrea pode representar um risco quando um trem transporta veículos blindados: a carga pode tombar. A constatação dessa realidade levou Estônia, Letônia e Lituânia a lançarem o Projeto Ferroviário Báltico, um investimento de 24 bilhões de euros explicitamente concebido para suportar trens militares de grandes dimensões e eliminar o perigoso processo de transferência de veículos entre redes com larguras diferentes.
Na Espanha e em Portugal, a situação é semelhante, dificultando qualquer transferência urgente da península. A Alemanha, que deveria funcionar como a grande rodovia militar da Europa, é talvez o exemplo mais preocupante: estradas esgotadas, pontes em estado crítico e uma rede ferroviária que, há anos, já não era adequada para operações de alta intensidade.
Deslocar um exército na Europa não é apenas uma questão de infraestrutura: é também um verdadeiro pesadelo. Como a maioria dos países atravessados não estaria formalmente em guerra, suas leis trabalhistas e alfandegárias permaneceriam em vigor mesmo em meio à mobilização militar. Um comboio cruzando três fronteiras poderia se deparar com três regulamentações diferentes referentes a paradas obrigatórias para caminhoneiros, procedimentos alfandegários incompatíveis ou autorizações de trânsito que devem ser emitidas em papel, já que a OTAN evita documentos digitais por medo de ataques cibernéticos.
Alemanha, Polônia e Holanda tentaram romper esse labirinto criando um “Schengen Militar” embrionário, mas a regulamentação permanece fragmentada, lenta e vulnerável. Bruxelas identificou 2,8 mil pontos críticos de infraestrutura que precisam urgentemente de modernização, embora apenas 500 tenham sido priorizados, e o cumprimento dos planos depende de governos cujas prioridades políticas mudam a cada ano. Soma-se a essa complexidade a multiplicação e a variedade de veículos em serviço, o que torna quase impossível padronizar a cadeia logística. Como alerta Sollfrank, não se pode planejar cada “parafuso”, mas é possível planejar os cenários, e hoje a Europa está apenas começando a entender a real dimensão do problema.
Indústria como elo decisivo
Além disso: a modernização da mobilidade militar exige não apenas a adaptação de pontes e estradas, mas também a reconstrução da capacidade industrial para transportar um exército contemporâneo. Uma divisão leve pode necessitar de até 200 trens, cada um com mais de 40 vagões, o que representa mais de 8 mil plataformas logísticas para um único deslocamento operacional. As empresas ferroviárias europeias, da Deutsche Bahn às operadoras do Báltico, estão firmando acordos para reservar capacidades militares, enquanto a Rheinmetall começa a oferecer serviços completos para comboios que atravessam a Alemanha, desde dormitórios móveis até oficinas de emergência.
Mas a Europa não produz vagões de alta capacidade ou veículos especializados em quantidade suficiente, e a indústria precisa de licitações conjuntas e especificações unificadas para conseguir produzir no ritmo necessário. Com os países da OTAN comprometidos em aumentar os gastos com defesa para até 5% do PIB até 2035, parte desse aumento deve ser destinada à transformação da infraestrutura em uma rede capaz de absorver o maior deslocamento militar na Europa desde 1945.
Dissuasão e credibilidade
Para a OTAN, a mobilidade é mais do que uma questão logística: é a base da sua credibilidade. A dissuasão só funciona se a Rússia souber que a Europa pode reagir rapidamente, que os seus exércitos podem chegar ao leste antes que o inimigo consolide as suas posições e que um eventual ataque encontraria uma resposta contundente em dias, não em semanas.
O impensável (a invasão de um país aliado, a necessidade de deslocar 200 mil soldados em tempo recorde, a possibilidade de atravessar metade da Europa sob pressão) já não é um exercício acadêmico, mas uma necessidade estratégica.
Nesse contexto, o alerta de Sollfrank resume a mudança de paradigma: a credibilidade depende da prontidão, e estar preparado significa resolver todas as vulnerabilidades antes que Moscou as possa explorar. Entretanto, a Europa corre contra o tempo para reconstruir uma geografia militar que desapareceu após o fim da Guerra Fria e cuja ausência, se mantida, transformaria qualquer defesa numa promessa vazia.
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