Aplicativo de namoro mais popular da China não está em celulares, mas num parque cheio de pais com guarda-chuvas

  • Amor, versão 1.0: Pais chineses assumem função para combater solidão digital de seus filhos

  • Nos parques da China, pais se tornam casamenteiros armados com cartazes, guarda-chuvas e esperança

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PH Mota

Redator
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Jornalista há 15 anos, teve uma infância analógica cada vez mais conquistada pelos charmes das novas tecnologias. Do videocassete ao streaming, do Windows 3.1 aos celulares cada vez menores.

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Em tempos em que o amor parece se resumir a um "deslizar para a esquerda" ou "deslizar para a direita", encontrar um parceiro nunca foi tão fácil... ou tão difícil. Enquanto Tinder, Bumble ou Hinge prometem compatibilidade por meio de algoritmos, na China o aplicativo de namoro mais usado não exige conexão com a internet, apenas uma impressora, um guarda-chuva e pais preocupados.

Todo fim de semana, parques inteiros em cidades como Pequim, Xangai ou Chongqing se transformam num mosaico de cartazes plastificados com descrições pessoais. Não são os próprios solteiros que os colocam, mas sim seus pais. É o chamado mercado matrimonial ou xiangqin jiao (literalmente, "cantinho do encontro às cegas"), um fenômeno que pode ser descrito como uma versão analógica de um aplicativo de namoro.

Amor em tempos de crise demográfica

A ascensão desses mercados tem origem em um paradoxo: enquanto aplicativos e agências de namoro se multiplicam, casamentos e nascimentos despencam. Em 2024, apenas 6,1 milhões de casais se casaram na China, 21% a menos que no ano anterior e o menor número desde o início dos registros, segundo dados do Wall Street Journal. Este ano houve uma pequena recuperação — 3,54 milhões de casamentos no primeiro semestre — graças a uma nova política que simplifica o registro civil, de acordo com o South Morning Post, mas a tendência geral continua em queda.

As causas dessa situação são múltiplas: longas jornadas de trabalho, preços altos dos imóveis, desigualdade de gênero e, sobretudo, novas prioridades entre os jovens. “A energia é limitada, então elimino o que mais me esgota. Primeiro? Os encontros”, confessou uma estudante de 22 anos, refletindo uma profunda mudança geracional. Diante desse cenário, muitos pais decidiram passar da preocupação à ação: se seus filhos não procuram um parceiro online, procuram nos parques.

Como funciona o Tinder de papel?

Segundo a Noema Magazine, o mercado do primeiro amor surgiu há mais de uma década em Xangai, no Parque do Povo. Todos os sábados e domingos, faça chuva ou faça sol, o parque se enche de pais com cartazes pendurados em cordas, bancos ou guarda-chuvas abertos. Eles detalham idade, altura, peso, salário, bens, até mesmo se os pais do(a) pretendente são aposentados. As fotos, curiosamente, são opcionais. “Quem se sai melhor é a média: nem muito bom, nem péssimo”, explicou um casamenteiro apelidado de professor Gu, que cobra o equivalente a US$ 16 para exibir um cartaz por seis meses.

Em Chongqing, outra das grandes cidades do sudoeste, o Wall Street Journal descreveu cenas semelhantes: pais aposentados espremidos em caminhos repletos de cartazes. Alguns participantes usam o WeChat — o aplicativo onipresente na China — para escanear códigos QR ou trocar contatos. Uma mulher incluiu em seu perfil que ganha US$ 560 por mês, que possui casa e carro e que procura um marido “sem vícios, com menos de 29 anos e no máximo 1,73 m de altura”. Na página seguinte, um homem de 26 anos pedia uma esposa com formação universitária e “que não seja muito gordinha”, um reflexo de padrões ainda muito tradicionais.

Na China, o casamento ainda é considerado uma aliança econômica e familiar, e não um ato romântico. Portanto, o mercado matrimonial é, como detalhado na Noema, “uma fusão entre o Match.com e uma feira livre”, onde banners substituem perfis digitais e os pais atuam como filtros humanos.

Feira

O amor é encontrado?

Na verdade, poucos têm sucesso. As histórias de casais formados por meio desse fenômeno são quase inexistentes. A maioria retorna todo fim de semana por hábito, companhia ou simplesmente para passar o tempo. Um pai de Xangai, entrevistado pelo jornal The Age, contou que frequenta o mercado há mais de um ano e só conseguiu duas combinações para seu filho de 36 anos, sem sucesso. “Eu só atuo como intermediário, passo as informações para ele, mas no final depende dele”, confessou resignado.

Apesar de tudo, para muitos, é uma forma de catarse geracional. “Nossos filhos pensam ‘por que eu deveria me contentar com pouco?’”, disse uma mulher apelidada de Irmã Gao, uma casamenteira veterana que chega toda semana com dezenas de perfis plastificados. “Na nossa geração, as pessoas eram mais resistentes. Hoje em dia, elas não toleram nada”.

Há também jovens que desafiam o convencional. Conforme relatado pela emissora estatal CGTN, Huang Junjie, de 29 anos, decidiu anunciar seus serviços no mercado de Pequim. “Tentei aplicativos como Douyin ou Xiaohongshu, mas eles pareciam muito distantes. Aqui, pelo menos, você vê as pessoas cara a cara”, explicou ele, ao lado de sua placa.

Ele procurava uma mulher madura e estava até disposto a casar-se com um matrilocal — morar com a família da esposa —, algo impensável há uma geração.

Além do amor

Por trás de cada guarda-chuva, há uma história de ansiedade e orgulho familiar. Na China, muitos pais sentem que ver seus filhos casados ​​é sua última missão na vida. Em uma sociedade onde a solteirice é vista quase como um fracasso, os mercados de encontros são, ao mesmo tempo, um espaço de esperança e vergonha. Por isso, alguns pais confessaram sentir-se humilhados por terem que "oferecer" seus filhos em público, embora outros tenham defendido seu direito de intervir. "As meninas não querem dizer 'Quero um namorado', então nós as ajudamos", disse uma mãe de Xangai.

No fundo, o fenômeno também reflete a solidão de uma geração mais velha. Com mais de 300 milhões de aposentados, muitos deles viúvos ou divorciados, frequentar os mercados de encontros também é uma forma de socializar e não ficar sozinho em casa.

Enquanto isso, o governo tenta estancar o declínio dos casamentos com incentivos econômicos, auxílios para filhos e até cursos universitários sobre “educação romântica”. Mas, como apontam os analistas, os resultados ainda são modestos: os jovens valorizam mais a liberdade pessoal do que a pressão para se casar.

Pressão sobre as mulheres

Nesse cenário, as mulheres sofrem uma pressão desproporcional. Na China, permanecer solteira após os 27 anos pode transformar alguém no que se chama de Sheng Nu, literalmente “mulher excedente”. O termo, popularizado pela mídia estatal nos anos 2000, tornou-se um estigma social que leva muitas profissionais a justificarem sua solteirice para suas famílias. Segundo o The Washington Post, “algumas chegam a recorrer a cursos de ‘como encontrar um namorado’ ou agências de encontros de luxo que cobram milhares de dólares para garantir um ‘casamento adequado’”. Outras simplesmente se recusam a ceder à pressão. “Não é que sejamos exigentes”, disse uma mulher entrevistada em Xangai, “é que eles não estão à altura da tarefa”.

Nos parques da China, entre guarda-chuvas, cartazes plastificados e pais fazendo o papel de cupido, o amor parece estar dividido entre a tradição e os algoritmos. Os mercados matrimoniais não são apenas uma curiosidade cultural: são um reflexo de uma sociedade que envelhece, se individualiza e busca soluções para o futuro nos métodos do passado.

Mas, pensando bem, talvez esse não seja um dilema exclusivamente chinês. Num mundo onde a solidão cresce na mesma proporção que os aplicativos de namoro, todos nós estamos um pouco em busca do par perfeito — mesmo que seja fora do alcance do Wi-Fi. E, considerando como as coisas estão, talvez não seja uma má ideia levar meus pais ao parque.

Imagens | JPBowen, Another Believer

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