Se olharmos para o Japão rural de um ano pra cá, uma palavra define bem a situação: instabilidade. O país vive uma crise demográfica profunda, marcada pelo envelhecimento acelerado da população e pela queda dramática na taxa de natalidade — o que afeta não só a economia, mas toda a estrutura social.
Em resposta, o Japão vem apostando em estratégias inéditas: incentivar a imigração, oferecer milhares de euros para atrair jovens e até enfrentar o fenômeno bizarro de vilarejos com mais bonecos do que moradores.
No meio desse colapso silencioso, escolas rurais estão sendo fechadas em ritmo alarmante. A BBC já detalhou isso em um longo especial: todos os anos, cerca de 450 escolas são desativadas no interior japonês, vítimas diretas do êxodo das novas gerações para os grandes centros urbanos. Esses prédios, que antes eram corações pulsantes de suas comunidades, agora são estruturas vazias que escancaram a solidão das regiões despovoadas.
A cidade de Miyoshi, na ilha de Shikoku, representa bem esse cenário. Sua população despencou de quase 78 mil pessoas em 1955 para cerca de 20 mil atualmente. E mais de 40% dos moradores têm mais de 65 anos. Em 2005, a escola primária Deai foi fechada — e, na época, parecia apenas mais um número nessa estatística de decadência rural.
Mas foi aí que surgiu a virada de chave. Porque a escola desativada, em vez de ser esquecida, se tornou o embrião de uma ideia surpreendente: renascer como hotel e espaço de reencontro humano.
Uma designer e uma ideia. Foi assim que tudo começou
Em 2014, a designer Shuko Uemoto visitou Miyoshi com seu filho pequeno. A viagem, que era apenas uma escapada da rotina, virou um ponto de virada: o ar puro e a natureza ao redor causaram uma melhora imediata na saúde do menino, que sofria de asma.
Tocada por essa experiência pessoal e impactada pelo silêncio quase sagrado e pela beleza crua da paisagem, Uemoto teve uma visão: transformar uma escola abandonada em um espaço de descanso, cura e comunidade. Assim que encontrou o antigo prédio da Escola Deai, cercado por árvores e com o som suave de um rio ao fundo, ela soube que era ali.
Da lousa ao acolhimento
Nascia então o Hare to Ke, uma hospedaria rural que carrega no nome uma antiga dualidade da cultura japonesa: hare, os dias festivos, extraordinários; e ke, a rotina do cotidiano. A proposta é resgatar o equilíbrio entre esses dois mundos, num tempo em que a vida comum parece ter sido soterrada por excesso de estímulo e pressa.
Os quartos ocupam antigas salas de aula, cuidadosamente restauradas. Lá ainda se encontram lousas, carteiras escolares, frascos de laboratório e murais pintados por antigos alunos. Nada ali foi apagado. Pelo contrário: o passado é honrado em cada detalhe, criando uma experiência sensorial profunda, enraizada na memória e na simplicidade. É um convite à reconexão com o tempo, com a terra e com a própria essência.

Dormir como nunca
Esse é o foco do hotel, que se especializou no que chama de Sleep Trips, experiências voltadas para melhorar profundamente a qualidade do sono. A partir de um breve questionário, cada hóspede recebe infusões medicinais personalizadas, além de sessões de aromaterapia, banhos com água de nascente e momentos em uma sauna de cedro com vista para a floresta.
Tudo é pensado para ajudar a “reconectar os cinco sentidos” com um ritmo de vida mais lento, mais orgânico. Em um país onde a poluição sonora e luminosa é constante, o silêncio absoluto e a escuridão total de Miyoshi têm sido, para muitos, uma revelação. Dormir bem, mesmo que por uma única noite, transforma toda a experiência da viagem, afirma Uemoto em entrevista à imprensa britânica.

Um “outro” tipo de turismo
O Hare to Ke vai muito além de ser apenas um hotel. Seu impacto na comunidade foi tão profundo que ex-alunos e até o antigo diretor da escola voltaram para visitar o prédio, agora cheio de vida. Moradores mais velhos se reúnem no antigo campo de esportes para jogar gateball, enquanto os hóspedes observam da janela das salas de aula que hoje funcionam como espaços comuns.
Além disso, o hotel promove oficinas de culinária com ingredientes locais, feiras mensais e atividades culturais como aulas de Awa Odori, a dança tradicional da província de Tokushima.
Essas iniciativas não só fortalecem os laços entre visitantes e moradores, como também ajudam a preservar tradições que, sem esse tipo de intervenção, corriam sério risco de desaparecer.
Legado ancestral
A experiência em Miyoshi vai muito além do descanso: ela se desenrola em um cenário cultural e histórico que desafia o tempo. Os hóspedes podem participar do tradicional festival do Monte Tsurugi, com uma procissão ritual que acontece há mais de 900 anos. Também é possível explorar o Vale de Iya e cruzar suas icônicas pontes de cipó, ou ainda saborear jantares preparados com grãos cultivados em terraços inclinados em até 40 graus.
Tudo ali parece cuidadosamente pensado para integrar o visitante a um modo de vida passado de geração em geração, e que agora encontra no turismo respeitoso uma nova forma de continuar existindo.
Um modelo que inspira
Desde a inauguração do Hare to Ke, pelo menos 13 escolas em Miyoshi foram transformadas em cafés, escritórios ou novas hospedagens. A iniciativa, apoiada pela administração local, se tornou um modelo de revitalização que devolveu vida econômica, autoestima coletiva e visibilidade a uma região que parecia fadada ao esquecimento.
Ainda assim, o desafio é imenso. O Japão perde cerca de 900 mil habitantes por ano, e estima-se que mais de 40% dos municípios do país podem desaparecer nas próximas décadas. Diante desse cenário, o exemplo de Miyoshi mostra que é possível resistir ao abandono — não com grandes obras ou promessas vazias, mas com soluções sustentáveis e profundamente conectadas à memória e à identidade local.
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