A parceria entre Walmart e OpenAI, que permitirá que clientes do Sam’s Club façam compras diretamente pelo ChatGPT, acendeu um alerta no setor varejista e entre especialistas em tecnologia. A gigante norte-americana — maior empresa de varejo do mundo — decidiu integrar o chatbot à sua plataforma, permitindo que o usuário finalize uma compra inteira dentro da conversa.
Parece apenas mais uma funcionalidade digital, mas o impacto pode ser muito maior. Para Alessandra Montini, professora da FIA Business School e especialista em análise de dados e inteligência artificial, a novidade representa uma virada de paradigma: o varejo está deixando de ser “reativo” — baseado em busca, comparação e clique — para se tornar proativo, com a IA aprendendo o comportamento do cliente e antecipando suas necessidades.
“Com a ajuda da IA, o cliente conversa e compra sem sair da interface. O varejo passa a agir antes mesmo do consumidor pedir. É o início de uma nova fase, em que a inteligência artificial deixa de ser ferramenta de apoio e passa a ocupar o centro da experiência de compra”, explica Montini, em entrevista ao Xataka Brasil.
O fim de sites e da barra de busca
O movimento anunciado pelo Walmart pode alterar profundamente o modo como as pessoas compram online. Em vez de digitar termos, comparar resultados e clicar em links, o usuário simplesmente conversa com a IA — pedindo, por exemplo, “reponha meu café favorito” ou “me recomende um vinho para um jantar com amigos”.
A tecnologia transforma o e-commerce tradicional em uma experiência conversacional e contextual, capaz de compreender linguagem natural, histórico de consumo e preferências individuais. O resultado, segundo Montini, é uma jornada mais fluida, mas também mais dependente dos sistemas automatizados.
“A IA antecipa o que o cliente vai querer, e isso pode aumentar o ticket médio e a fidelização. Mas também muda a natureza da decisão de compra. A recomendação deixa de ser um clique consciente e passa a ser uma resposta automática do algoritmo”, afirma.
A professora acredita que a iniciativa reforça a tendência de uma “internet sem sites”, conceito que vem ganhando força com os avanços de assistentes como o ChatGPT, o Gemini da Google e a Alexa da Amazon.
“Hoje, a web está migrando de uma lógica centrada em sites e aplicativos para uma lógica centrada em conversas. Em vez de procurar, clicar e comparar, passamos a pedir, conversar e confirmar”, explica.
Essa transição é alimentada por quatro fatores principais: eficiência, integração, personalização e economia de atenção. “É mais natural pedir a um assistente para reservar um restaurante ou comprar algo do que abrir cinco abas no navegador. As pessoas querem menos fricção".
Mas, para Montini, isso não significa que os sites desaparecerão. “As empresas ainda precisam de controle sobre sua narrativa, estética e dados. Os sites continuarão existindo — talvez de forma invisível — como infraestrutura que alimenta as IAs. E há setores, como moda e turismo, em que o apelo visual e emocional ainda é insubstituível".
Privacidade e manipulação: o lado sombrio da conveniência
Permitir que um chatbot finalize uma compra em nome do consumidor traz riscos sérios de segurança e ética. Montini lista três preocupações principais: exposição de dados sensíveis, autonomia indevida da IA e vieses nas recomendações.
“Para comprar, o sistema precisa acessar dados financeiros, endereço, histórico de compras e até preferências comportamentais. Se houver falha de segurança, tudo isso pode ser exposto”, alerta.
Há também o risco de decisões automáticas sem consentimento — como uma IA interpretando um pedido genérico e realizando uma compra maior do que o esperado. E, pior: o usuário pode nem perceber quando a recomendação é de fato neutra ou quando há interesse comercial por trás.
“Se o chatbot for controlado por uma varejista, ele pode favorecer produtos mais rentáveis ou da própria marca. É uma linha tênue entre assistência e influência. A IA ética é a que empodera o consumidor, não a que decide por ele”, pontua.
Com a inteligência artificial atuando como intermediária nas compras, muda também a forma como os dados são coletados e processados. Segundo Montini, isso exige uma revisão completa na governança da informação.
“Quando o chatbot passa a agir em nome do consumidor, ele redefine quem coleta, quem processa e quem decide o que fazer com os dados. Não basta cumprir a LGPD — é preciso garantir confiança algorítmica, isto é, saber que a IA está tomando decisões de forma justa, transparente e auditável”, explica.
Ela defende que empresas que adotam modelos generativos no varejo sejam obrigadas a detalhar como os algoritmos recomendam produtos, quais dados são utilizados e quem tem acesso às informações. “Sem isso, o consumidor perde totalmente o controle sobre sua jornada digital".
O Brasil na corrida do varejo inteligente
A professora acredita que o movimento do Walmart pode inspirar empresas brasileiras — especialmente aquelas que já possuem grandes volumes de dados de clientes, como Magalu, Pão de Açúcar, Carrefour e Droga Raia.
“O consumidor brasileiro valoriza o atendimento rápido e humanizado. Integrar IA a canais como WhatsApp pode oferecer recomendações personalizadas em tempo real, além de automatizar reposições de produtos ou gerar listas para retirada em loja. É um caminho totalmente viável por aqui”, diz.
Além da personalização, Montini destaca o potencial de eficiência operacional. “A IA pode reduzir custos de atendimento, gerar descrições automáticas de produtos e até prever demanda. No varejo de margens apertadas, isso é valioso”.
Entretanto, ela ressalta que o sucesso depende de parcerias estratégicas. “O Walmart não fez isso sozinho. No Brasil, poucas empresas têm capacidade de desenvolver IA generativa internamente. A colaboração com startups e provedores tecnológicos será essencial”.
A desigualdade digital como ameaça
Apesar do entusiasmo, Montini faz um alerta: a revolução do varejo conversacional pode ampliar desigualdades digitais. “Sim, a IA no varejo pode ampliar desigualdades digitais, se ficar concentrada em quem tem capital, dados e infraestrutura. Mas também pode nivelar o campo de jogo, se o país e o ecossistema empresarial democratizar o acesso, capacitar pequenos empresários e promover transparência e interoperabilidade".
Ela defende políticas públicas e programas empresariais que incentivem o acesso à tecnologia e a formação digital de pequenos empreendedores. “Em outras palavras: A IA não é inevitavelmente excludente — mas o modo como ela é implementada definirá se teremos um varejo mais eficiente ou mais desigual”.
Montini acredita que o ChatGPT será uma nova interface importante do comércio eletrônico, mas não o único canal. “O chat será dominante em compras recorrentes ou de rotina. Já os sites e aplicativos continuarão sendo vitais para produtos complexos, de alto valor ou que exigem experiência visual".
Na prática, ela acredita que o futuro será híbrido — um equilíbrio entre conveniência e controle, automação e escolha. “O Walmart está dizendo ao mundo que o varejo não será mais uma lista de produtos. Será uma conversa contínua entre o consumidor e a máquina. Mas essa conversa precisa ser ética, transparente e inclusiva”.
Crédito de imagem: Kevin Carter/Getty Images
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