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Ucrânia abriu centenas de drones e mísseis russos e encontrou milhares de componentes estrangeiros; agora, quer explicações dos aliados

A constatação de 100 mil componentes estrangeiros em um único ataque mostra como a globalização tecnológica reconfigurou os conflitos

Drones na Ucrânia / Imagem: National Guard of Ukraine
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Victor Bianchin

Redator
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Victor Bianchin

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Victor Bianchin é jornalista.

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Poderia ser feito um relatório interminável com as diferentes análises realizadas pela inteligência da Ucrânia ao se deparar com um artefato russo. Os drones revelaram em inúmeras ocasiões que, na guerra, as sanções internacionais servem de muito pouco. Agora, após a brutal ofensiva russa do último domingo, a Ucrânia voltou a dissecar o inimigo.

A essa altura, a surpresa já não é “quem”, mas “quanto”

Uma noite de ataque em massa exibiu, com crua nitidez, uma contradição que há tempos vem se formando na guerra moderna: a capacidade destrutiva de um país que se declara sancionado e isolado continua dependendo (e, em boa medida, prospera graças) aos circuitos, chips e peças que circulam pelos mercados civis de todo o mundo.

No assalto noturno que combinou 496 drones de ataque e 53 mísseis, as autoridades ucranianas contabilizaram 102.785 componentes de origem estrangeira embutidos nas munições e aparelhos que rasgaram o céu do país; desses, cerca de 100.688 estavam em drones (entre eles, cerca de 250 potentes réplicas do tipo Shahed) e o restante distribuído entre os Iskander (cerca de 1.500), Kinzhal (192) e Kalibr (405). Zelensky afirmou que a Ucrânia não pretende, com isso, apenas apontar culpados: trata-se de um exercício forense que revela como tudo — de um conversor a um microcontrolador — acaba acelerando a capacidade de persistência do agressor.

Os componentes identificados abrangem peças produzidas em massa pela indústria civil: conversores (analógicos e de potência), sensores, conversores analógico-digitais, microeletrônica e microcomputadores, que, segundo Kiev, provêm de empresas localizadas nos EUA, Reino Unido, China, Taiwan, Alemanha, Suíça, Japão, Coréia e Países Baixos.

A Ucrânia apontou exemplos concretos, como microcomputadores britânicos para controle de voo, microcontroladores suíços e conectores alemães e destacou que a maior diversidade e volume vêm da China e de Taiwan — o que explica por que, mesmo quando as peças mais avançadas estão sob restrição, a proliferação tecnológica continua alimentando arsenais.

Os números e a rastreabilidade revelam a limitação essencial das sanções: o regime internacional de controle de exportações esbarra em cadeias globais complexas, agentes intermediários e peças classificadas como “de duplo uso”, que circulam por mercados civis e centros logísticos que não questionam o destino final.

Drones

As normas de compliance das empresas e os controles estatais são necessários, mas insuficientes diante de re-exportações, transbordos e fornecedores que atendem a setores não militares. Além disso, mesmo as grandes corporações não têm visibilidade total sobre a vida útil e o destino final de cada componente. A consequência prática é uma economia de guerra que se alimenta da fronteira tênue entre o legal e o oculto, entre a fabricação lícita e o uso bélico.

Política e geoestratégia

A reação ucraniana também é política e operacional: além de denunciar, Kiev transfere os dados das peças e suas origens aos seus parceiros para pressionar por medidas concretas. Zelensky exige fechar “já” os fluxos de componentes críticos e propõe restrições adicionais, que vão desde controles de embarque até bloqueios logísticos.

Especialistas da própria Ucrânia pedem uma decisão coordenada em nível do G7 que aborde as lacunas de aplicação e harmonize listas de controle, procedimentos de due diligence e medidas de interdição em portos e rotas comerciais. Vladyslav Vlasiuk e outros responsáveis por sanções ressaltam que, sem uma ação sistêmica e sincronizada (inspeções, seguros de carga condicionais, monitoramento de re-exportações), as proibições permanecerão apenas no papel.

O fenômeno também levanta uma questão moral e prática para a indústria: até que ponto uma empresa deve assumir responsabilidade pelo uso final de seus produtos e quais investimentos isso exige em rastreabilidade, auditoria e controles de terceiros.

As respostas técnicas existem (servidores de monitoramento, listas de peças controladas, certificações de integridade do cliente), mas têm custos que, na prática, fragmentam mercados e elevam preços. Para os governos aliados, a solução passa por endurecer controles sem sufocar cadeias civis críticas. Para as empresas, por redobrar a diligência e colaborar com as autoridades.

Guerra industrializada

Em termos militares, a disponibilidade desses componentes acelera a produção em massa de drones e mísseis, reduz os prazos de fabricação e torna mais difícil desmantelar uma ameaça que encontra peças na economia global.

As ondas contínuas de ataques que danificam infraestruturas civis e matam ou ferem não combatentes demonstram que as peças não são meros objetos: são multiplicadores de dano. Para a Ucrânia, a batalha pelas sanções é, portanto, uma linha de frente adicional, e seu sucesso depende tanto da eficácia diplomática e jurídica de seus aliados quanto da capacidade técnica de rastrear e bloquear rotas logísticas.

Analistas do Business Insider lembram que fechar as lacunas exige combinar diplomacia, inteligência e regulamentação: harmonizar listas de controle, coordenar inspeções em portos, condicionar seguros e serviços logísticos e construir normas internacionais sobre a rastreabilidade industrial.

Também implica fortalecer capacidades nacionais de produção alternativa (realocação de cadeias críticas) e reduzir a dependência de componentes estratégicos em jurisdições com menor controle de exportações. Mesmo assim, nenhuma medida isolada será suficiente: a experiência demonstra que os fluxos se adaptam muito rapidamente. Por isso, a Ucrânia pede e precisa de uma estratégia em âmbito do G7 que combine sanções inteligentes, pressão sobre intermediários e um mapa claro de riscos e responsabilidades.

Um diagnóstico incômodo

A constatação desses mais de 100 mil componentes estrangeiros em um único ataque mostra como a globalização tecnológica reconfigurou os conflitos: agora, as vulnerabilidades não são apenas depósitos de munição ou bases, mas redes de suprimento, contratos comerciais e portos neutros.

A lição para os governos “amigos” da Ucrânia é dupla: reprimir o abastecimento é tão importante quanto fornecer defesas e, para as empresas, agir com responsabilidade não é apenas ético, mas uma questão de segurança coletiva. No fim, a pergunta que este episódio levanta não é apenas técnica (como cortar essa cadeia de suprimentos), mas política e moral: até que ponto a prosperidade industrial pode se sustentar sem regras de controle e sem mecanismos efetivos que impeçam que um chip aparentemente inofensivo acabe desencadeando violência em larga escala.

Imagem | National Guard of Ukraine

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.


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