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Por que o trailer de "Coração de Ferro" incomodou tanto? A resposta está além da Marvel

O trailer da nova série do Disney+ sobre a jovem gênia Riri Williams virou alvo de uma tempestade de dislikes. Mas o que realmente está por trás dessa rejeição?

Foto: Disney/Divulgação
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Você percebe que algo grande está acontecendo quando um trailer de apenas dois minutos se torna palco para mais de 300 mil descurtidas. Quando a internet se mobiliza para bombardear uma jovem negra que se atreve a ocupar um espaço que, até pouco tempo atrás, parecia reservado para homens brancos. Coração de Ferro (Ironheart) não é só uma série do Disney+. É também um espelho que reflete as inseguranças de quem ainda não aprendeu a lidar com representatividade.

O trailer oficial, lançado em 13 de maio, rapidamente superou em dislikes os números de As Marvels e Mulher-Hulk. Uma reação que, apesar de camuflada sob críticas à trama ou à execução, escancara uma velha dificuldade: aceitar que o protagonismo pode vir de quem sempre esteve à margem.

Uma nova heroína, velhas resistências

Riri Williams é o tipo de personagem que desafia estruturas. Com apenas 15 anos nos quadrinhos, ela constrói sua própria armadura de combate usando sucata nas instalações do MIT. Ela não herda tecnologia: ela cria. Mas, diferentemente de Tony Stark, cuja jornada foi uma resposta aos danos que causou, Riri surge do trauma. A perda do padrasto e da melhor amiga em um tiroteio é o estopim para que ela decida agir.

Criada por Brian Michael Bendis e Mike Deodato em Invincible Iron Man Vol. 3 #7 (2016), a personagem foi inspirada nas filhas adotivas de Bendis. Seu surgimento não foi para substituir Tony Stark, mas para expandir seu legado. E ainda que muitos digam que ela "tomou o lugar" do Homem de Ferro, Riri se recusou a adotar qualquer variação do nome Iron Man ou Iron Woman. Escolheu Ironheart.

Ainda que criada pelo mesmo autor de Miles Morales — e tida como uma contemporânea nos quadrinhos —, Riri Williams nunca teve o mesmo apelo imediato com o público que o jovem Homem-Aranha negro alcançou. E isso também revela nuances do fandom: o que é tolerável quando o personagem se encaixa em modelos já consagrados (o “outro Peter Parker”), torna-se mais difícil de digerir quando a inovação é radical, como é o caso de Riri. Ela não vem para reencenar um roteiro — ela escreve o próprio.

Nos quadrinhos mais recentes, sob a escrita de Eve Ewing, Riri desenvolve uma IA chamada Natalie, em homenagem à amiga morta. Natalie ("Neuro Autonomous Technical Assistant and Laboratory Intelligence Entity") é muito mais do que um Jarvis 2.0. É memória afetiva codificada.

Cultura nerd e seus limites de inclusão

A reação ao trailer de Coração de Ferro não é um caso isolado. Jane Foster como Thor, Kamala Khan como Ms. Marvel, Jennifer Walters como She-Hulk. Todas enfrentaram o mesmo script: rejeição, review bombing, gatekeeping.

A cultura nerd, tida por muito tempo como reduto dos excluídos, construiu seus próprios mecanismos de exclusão. Criou uma lógica de pertencimento pautada na repetição de arquétipos masculinos e brancos. Tony Stark, com seu carisma e gênio, tornou-se o molde. Riri, com sua genialidade precoce e sua presença jovem e negra, rompe esse molde.

Boa parte da onda de dislikes pode ser atribuída a essa perturbação no status quo. E também à falta de fomento narrativo. Desde sua estreia em Pantera Negra: Wakanda Para Sempre (2022), a personagem apareceu pouco. Um episódio em What If...?, alguns rumores, e um trailer lançado às pressas. Faltou consistência na construção da Riri no MCU.

A Marvel tentou se mover na última década com uma série de personagens diversos. Mas, frequentemente, essas tentativas esbarram na resistência de um público que entende a diversidade como "agenda" e não como evolução narrativa. Na verdade, essa reação diz mais sobre o público do que sobre os personagens. E diz mais ainda sobre como a cultura pop se tornou palco de uma batalha ideológica que extrapola as HQs e atinge o cerne de quem se sente dono das histórias.

Foto: Disney/Divulgação

A linguagem do trailer e os sinais sutis

O trailer de Coração de Ferro mergulha o público em uma Chicago visualmente crua. Grafites, ruas estreitas, realismo urbano. Um contraste direto com a tecnologia de ponta da protagonista. Riri é apresentada montando sua nova armadura com as próprias mãos. Entre easter eggs e referências, vemos Jim Rash reprisando seu papel como reitor do MIT, que já havia aparecido em Capitão América: Guerra Civil, e o uso de um moletom Jordan com design da artista local Nina Chanel Abney, homenageando a final da NBA de 1996.

Ao escolher Riri como ponto de conexão entre Wakanda e o legado de Stark, a Marvel aponta para uma reconfiguração do centro do poder tecnológico no MCU. Já não é só o laboratório de Malibu ou a torre em Manhattan. Agora, os avanços vêm de laboratórios periféricos, onde genialidade não precisa mais de herança bilionária, apenas de inventividade — e urgência.

Entre os vilões, The Hood (Anthony Ramos) promete tensionar o embate entre tecnologia e misticismo. O mesmo conflito visto em Homem de Ferro 3 e Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Rumores apontam ainda Alden Ehrenreich como Zeke Stane, filho de Obadiah Stane, o vilão do primeiro Homem de Ferro. Se confirmado, fecha-se um ciclo temático.

Foto: Disney/Divulgação

O futuro de Riri no MCU

Com roteiro principal de Chinaka Hodge e produção executiva de Ryan Coogler, Coração de Ferro estreou nesta terça-feira (24) com três episódios de uma só vez. A direção de Sam Bailey e Angela Barnes sugere foco nas camadas emocionais da protagonista, não apenas na ação.

Fora das telas, o aprofundamento da personagem nas HQs veio pelas mãos da escritora Eve L. Ewing, autora negra e acadêmica de Chicago. Em sua fase à frente de Ironheart (2018–2019), Ewing transformou Riri em algo mais do que uma sucessora de Stark. Ela deu à personagem conflitos íntimos, bagagem emocional e um senso de identidade que raramente é concedido a figuras negras no mainstream das HQs. Riri passou a ser espelho e janela: uma jovem tentando entender quem é, mesmo sob o peso de uma armadura feita para outro corpo.

Após Coração de Ferro, Riri deve voltar em Marvel Zombies e, segundo rumores, em Vingadores: Guerras Secretas, dos Irmãos Russo. Não estar em Vingadores: Doomsday não a exclui do futuro do MCU. Pelo contrário: indica uma construção mais lenta e promissora.

Coração de Ferro não é apenas uma nova entrada no catálogo da Marvel. É um experimento narrativo e simbólico que coloca a cultura pop frente a frente com suas barreiras mais persistentes. No centro dessa colisão está uma jovem negra, solitária, genial, moldando ferro e identidade ao mesmo tempo.

O incômodo causado pelo trailer não é sobre CGI ou roteiro — é sobre controle. Quem tem o direito de contar essas histórias? Quem pode ser o herói? A resposta que Riri oferece é tão direta quanto sua trajetória: quem constrói sua própria armadura merece ocupá-la.

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