Em maio, e por meio de dados do Eurostat, confirmou-se uma realidade que às vezes confunde a história: o mito de que os alemães trabalham mais que outros europeus não se sustentava nos números. A chave estava na qualidade do mercado de trabalho: grande parte dos trabalhadores alemães trabalha menos horas por semana em empregos de meio período, mas o fazem há mais anos do que outros trabalhadore.
E agora a OCDE chegou para colocar a Alemanha em seu devido lugar.
Crise de identidade profissional
A Alemanha, tradicionalmente associada à disciplina e à produtividade, enfrenta hoje um paradoxo: segundo a OCDE, é o país desenvolvido com o menor número de horas trabalhadas por ano, apenas 1.331, contra 1.898 na Grécia ou 1.716 em Portugal. A situação representa um golpe simbólico para um país que, há apenas uma década, impôs políticas de austeridade aos países do Sul, estigmatizando-os como aqueles que não trabalham duro.
A queda na carga de trabalho se alia a uma deterioração econômica palpável: o desemprego ultrapassou os três milhões de pessoas pela primeira vez em uma década, a economia se contraiu por dois anos consecutivos e o PIB já está menor do que em 2019, enquanto Espanha e Grécia crescem a taxas superiores a 2%.
A redução das horas trabalhadas tornou-se uma questão central na política alemã. O chanceler Friedrich Merz alerta que semanas de trabalho de quatro dias e uma ênfase exagerada no "equilíbrio entre a vida pessoal e a vida privada" não sustentarão a prosperidade do país.
Os dados são impressionantes: os trabalhadores alemães desfrutam de férias mais longas do que o mínimo legal, numerosos feriados e uma média de 19 licenças médicas por ano, em comparação com 16 antes da pandemia, uma mudança que os especialistas atribuem mais à cultura do que à saúde. Escândalos como o de um professor afastado desde 2009 e que recebe salário integral reforçaram a percepção de que a frouxidão no local de trabalho é insustentável.
Raízes do fenômeno
O Washington Post noticiou que especialistas sustentam que não se trata de preguiça, mas sim de barreiras estruturais. Quase metade das mulheres alemãs trabalha em meio período, um número que ultrapassa 65% no caso das mães, o que se traduz em uma das maiores disparidades no emprego equivalente em tempo integral em toda a UE.
Fatores históricos também pesam: na Alemanha Ocidental, mães trabalhadoras eram estigmatizadas como "mães corvos", enquanto na Alemanha Oriental, sob o modelo socialista, o emprego em tempo integral em creches era promovido desde a infância. Hoje, as diferenças culturais persistem e um sistema de creches com jornada reduzida impede que muitas famílias tenham empregos em tempo integral.
Especialistas concordam que expandir as creches e estender seu horário seria decisivo, mas soluções técnicas entram em choque com a política. Mudar o sistema tributário de declaração conjunta para individual poderia resultar no equivalente a meio milhão de empregos em tempo integral, mas é percebido como "antifamiliar" e difícil de aprovar.
Por sua vez, os empregadores pedem menos burocracia e mais imigração, enquanto alguns pesquisadores defendem reformas simples que liberem horas de trabalho ocultas. No entanto, as respostas do governo têm sido consideradas tímidas e insuficientes, e a sensação de adiamento persiste.
O elefante dos quatro dias
Paradoxalmente, enquanto líderes políticos pedem mais trabalho, cada vez mais empresas tentam reduzir a jornada semanal. Em 2024, 45 empresas experimentaram a semana de quatro dias com remuneração igualitária e jornada reduzida, com resultados positivos: maior produtividade por hora e funcionários mais felizes.
A maioria dessas empresas planeja manter o modelo, consolidando a tendência em favor do tempo livre. Assim, a Alemanha transita entre dois polos: um sistema produtivo que sofre com a estagnação e as pressões para estender a jornada de trabalho, e uma sociedade que valoriza cada vez mais a vida fora do trabalho, gerando um choque de visões que coloca em risco não apenas a economia, mas também a identidade do país.
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