Pode-se dizer que existem duas “Chinas” bem distintas em termos de aspirações. Por um lado, há aquela imagem imponente da nação cujas cidades concentram o maior número de bilionários, o país que atrai talentos com salários altíssimos e que, inclusive, está desafiando o todo-poderoso Vale do Silício. E, em segundo plano, existe a outra China, cuja crise no mercado de trabalho afeta muitos jovens e o estancamento do consumo interno começa a impactar a economia. Para essa “segunda” China, há um espaço que vem se tornando um refúgio.
Esse lugar se chama Chengdu — e não para de crescer.
Refúgio de bem-estar
Quem contou isso em uma extensa reportagem foi o New York Times. Em meio a uma economia chinesa marcada pelo estancamento do consumo interno, pela incerteza no mercado de trabalho e por uma repressão política cada vez maior, Chengdu, uma cidade no sudoeste do país com mais de 2.300 anos de história, vem surgindo como símbolo de uma nova aspiração dos jovens: viver melhor, mesmo ganhando menos.
Longe do frenesi produtivo e do encarecimento dos imóveis que caracterizam megacidades como Xangai, Shenzhen ou Guangzhou, Chengdu viu sua população crescer 30% em apenas cinco anos, chegando a 21,5 milhões de habitantes, e seu mercado imobiliário se tornou o mais dinâmico do país, com um aumento nos preços de 16,8% desde 2021.
O segredo? Um estilo de vida tranquilo, uma cena artística florescente, seus emblemáticos pandas e, acima de tudo, seu baixo custo de vida — uma receita que faz da cidade um imã para jovens cansados do grind urbano e que desejam se reconectar com uma vida mais leve, sem abrir mão por completo das oportunidades.
Desencanto com o modelo clássico
O Times explica que a decisão de se mudar para Chengdu não é apenas geográfica — é existencial. A reportagem conta casos de jovens como Emma Ma, que trocou Pequim por um apartamento acessível, um estúdio de videoclipes e uma ajudante doméstica por 400 dólares (R$ 2.265) ao mês; ou Treasure Wu, que deixou Xangai após uma “experiência cinza e opressiva”. São casos que exemplificam essa guinada geracional.
Sob essa ótica, a ideia de que longas jornadas de trabalho e altos salários justificam uma vida sacrificada em cidades congestionadas começa a perder força diante de uma narrativa onde o bem-estar cotidiano importa mais. Chengdu, antes considerada uma cidade preguiçosa ou pouco ambiciosa, agora representa uma resposta para essa outra China que, apesar da modernização tecnológica, não consegue mais oferecer a ascensão social garantida que as gerações anteriores vivenciaram — pelo menos, não para todos.
E há mais, é claro. O veículo lembra que, apesar de oferecer menos oportunidades de ascensão profissional ou salários competitivos, Chengdu soube capitalizar sua qualidade de vida e seu legado cultural. Como? A partir de sua enorme comunidade LGBTQ+ e de sua cena de hip-hop, passando por seu agitado circuito de casas de chá e restaurantes de hot pot, a cidade é percebida como um oásis de expressão e estabilidade em tempos de incerteza.
A isso se soma sua crescente relevância em setores como entretenimento digital, produção audiovisual e e-sports, com sucessos como Ne Zha 2 e estúdios de videogames que impulsionam a economia local. Historicamente ligada à defesa nacional por sua localização estratégica, Chengdu agora pode se beneficiar da guinada que Xi Jinping quer imprimir ao modelo econômico chinês: uma aposta em indústrias-chave, como semicondutores e produção nacional avançada, afastando-se da dependência externa.
Termômetro de uma transição nacional
Mais do que uma simples anedota urbana, o auge de Chengdu serve como termômetro das tensões internas que afligem a segunda maior economia do planeta. Por um lado, reflete um país que busca equilíbrio entre modernidade tecnológica e qualidade de vida. Por outro, expõe a dissonância entre um modelo econômico centrado na exportação — que já não rende como antes — e as aspirações individuais de milhões de pessoas que desejam muito mais do que apenas sobreviver: querem viver bem.
Como apontaram ao Times vários analistas do mercado imobiliário chinês, Chengdu tem algo tão simples de entender quanto difícil de alcançar no contexto atual: oferece preços de moradia compatíveis com os salários — um luxo impensável em outras grandes cidades (não só da China, é claro), mas que explica perfeitamente por que tantos parecem dispostos a aceitar empregos menos lucrativos em troca de tempo, espaço e comunidade.
Fim do culto ao sacrifício
Talvez este seja o último ponto que vale analisar. A pandemia de COVID consolidou de vez essa transição. Enquanto Xangai sofria com confinamentos intermináveis, Chengdu oferecia estabilidade. Aquilo que antes era visto como uma rotina provinciana passou a ser percebido como virtude.
Mas, lá, isso se manteve. Hoje, o que Chengdu representa vai muito além de seus pandas ou de seu patrimônio histórico: simboliza uma forma de resistência tranquila e pragmática diante do esgotamento sistêmico de uma nação que está redefinindo seus próprios valores. Nas palavras da analista Huang Xue ao Times: “em tempos de incerteza, as pessoas querem aproveitar a vida enquanto podem.” Assim, nesse desejo silencioso, a cidade caminha para se tornar não só a mais feliz da China, mas também seu espelho mais lúcido.
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