Há gestos que nos definem como espécie, e dançar é um deles. Quando tudo falha, o corpo continua falando: se agita, se sacode, se liberta. Barbara Ehrenreich documentou isso no livro Dancing in the Streets, onde mostra como a dança serviu historicamente como resposta coletiva à dor. Hoje, esse instinto parece despertar novamente em um mundo desgastado pelo estresse, pela incerteza e pelo isolamento.
Em galpões, parques, cafés e até resorts de luxo, as raves do século 21 já não giram exclusivamente em torno do álcool, das luzes estroboscópicas e da madrugada. Agora também podem começar com uma sessão de yoga ao amanhecer, incluir espaços livres de substâncias, incentivar conversas profundas e oferecer café em vez de coquetéis.
A revista Marie Claire afirma que o fenômeno está se espalhando em muitos países e a música eletrônica continua sendo o coração pulsante. No entanto, o propósito mudou: trata-se de reconectar-se com o corpo, com os outros e consigo mesmo. “Estamos muito conectados online, mas possivelmente mais desconectados na vida real”, afirmou ao veículo Kesang Ball, cofundadora da Trippin, uma plataforma global de cultura jovem. “As pessoas anseiam por espaços onde possam se reencontrar com pessoas que pensam como elas”.
Uma mudança cultural
Pode parecer um capricho, já que as raves sempre foram um espaço contracultural que permitia responder ao que acontecia no momento. No entanto, como aborda a revista de moda, a necessidade desse novo movimento gira em torno do esgotamento emocional pós-pandemia, da epidemia de solidão, do colapso do bem-estar mental e do cansaço diante de uma vida digital que prometia conexão, mas trouxe vazio.
Essa mudança também reflete uma sensibilidade geracional. Diferentemente do estereótipo millennial da festa até o amanhecer, a Geração Z prioriza o autocuidado, a autenticidade e a saúde mental. O excesso, o “pt” e a ressaca deixaram de ser gestos de rebeldia; hoje, o subversivo é se manter lúcido, conectar-se profundamente e encontrar prazer sem culpa. Nesse contexto, a rave não desaparece, ela se transforma.
Uma pesquisa da Universidade de Leeds, Exploring Relationships Between Electronic Dance Music Event Participation and Well-being, descobriu que frequentar eventos de música eletrônica está diretamente associado a um maior bem-estar psicológico, emocional e social. No estudo, identificaram que os participantes de raves experimentam sentimentos profundos de conexão, expressão individual, comunidade e euforia coletiva.
E nem uma gota de álcool: a sobriedade é a tendência e os mais jovens estão trocando o drink pelo espresso. As chamadas coffee raves — festas matinais em cafeterias transformadas em clubes — são apenas um exemplo dessa mudança de paradigma.
Da pista à paz interior
A mudança tem sido progressiva, mas firme. Em uma reportagem, o site EDM, conversou com coletivos como Daybreaker, Superbloom e The Oracle Project, que estão na vanguarda de uma nova era de festas: diurnas, conscientes e comunitárias. Nelas, dançar e se cuidar não são ações opostas. Lauren Brenc, fundadora do The Oracle Project, resume assim: “Eu não queria abrir mão da diversão de sair, mas também não queria continuar girando em torno de algo que me deixava doente e não promovia uma conexão profunda”.
O movimento também tem sua versão de luxo. Como detalhado na Travel and Leisure, em Koh Samui, o hotel W organiza retiros musicais onde DJs emergentes como Joplin dividem a programação com sessões de cura sonora e yoga em um ambiente cinco estrelas. Ali, a música eletrônica não compete com o descanso, mas se sincroniza com ele. E esse não é o único espaço, pois, em cafeterias como a Santanera Coffee em Madri ou a Vera Café em Barcelona, as coffee parties reúnem centenas de jovens que dançam ao som de house e techno com um cappuccino na mão. Tudo, à plena luz do dia.
A nova cultura rave não é uma cópia nostálgica do passado. É uma reinvenção. Diante de um mundo que mercantiliza o tempo, esmaga a alegria e fragmenta o senso de pertencimento, dançar juntos — sem filtros nem telas — pode ser um ato profundamente radical. Rob Glassett, conhecido como Fold, resume para a Marie Claire: “As pistas de dança sempre foram lugares importantes para desconectar… Mas não para emburrecer, e sim para reconectar”.
Em uma era saturada de estímulos e algoritmos, voltar ao corpo, ao ritmo e ao contato humano pode ser mais revolucionário do que parece. E se, como diz a DJ Surusinghe na revista de moda, “A música tem um poder comparável ao da religião”, então a pista de dança é, talvez, um dos últimos santuários verdadeiramente livres.
Imagem | Unsplash
Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.
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