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Muitas pessoas não sabem, mas o Ozempic só existe por causa de um monstro

Conhecido por sua mordida venenosa e passos lentos, um monstro guarda no veneno a pista biológica que pavimentou o caminho para o Ozempic, Wegovy, Mounjaro e toda a revolução dos remédios GLP-1

Crédito de imagem: Xataka Brasil via ChatGPT
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João Paes

Redator
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João Paes

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Escreve sobre tecnologia, games e cultura pop há mais de 10 anos, tendo se interessado por tudo isso desde que abriu o primeiro computador (há muito mais de 10 anos). 

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O monstro-de-gila não parece exatamente o tipo de criatura que mudaria os rumos da medicina moderna. Com seu corpo robusto, pele escamosa em tons vibrantes e um andar que beira o preguiçoso, ele poderia facilmente passar despercebido pelos desertos da América do Norte — não fosse por seu veneno poderoso e por um detalhe bioquímico que o colocaria, indiretamente, entre os protagonistas da maior revolução farmacêutica das últimas décadas. Esse mesmo lagarto que pode causar complicações sérias em humanos — e, em 2024, chegou a ser responsável pela morte de um homem no Colorado — abriga, em sua toxina, a chave que abriu espaço para medicamentos que mudariam a vida de milhões de pessoas.

O processo começou quando pesquisadores identificaram no veneno do monstro-de-gila um hormônio peculiar, capaz de desacelerar drasticamente o metabolismo do animal e permitir que ele sobreviva por meses com pouquíssimas refeições. Era a exendina-4, uma molécula surpreendentemente semelhante ao GLP-1 humano — o hormônio que regula a liberação de insulina após as refeições. A diferença crucial? Enquanto o GLP-1 natural se dissipa rapidamente do organismo, a exendina-4 permanece ativa por muito mais tempo, permitindo uma ação contínua na regulação da glicose. Foi a fagulha necessária para que cientistas iniciassem a criação dos agonistas de GLP-1, categoria que inclui nomes conhecidos como Ozempic, Wegovy e Mounjaro.

Crédito de imagem: Getty Images via BBC O monstro-de-gila

A primeira grande aplicação veio com o Byetta, medicamento direcionado ao tratamento de diabetes tipo 2. A partir dele, ajustes finos — às vezes envolvendo apenas um ou dois aminoácidos — deram origem a versões mais estáveis e duradouras, como a semaglutida, hoje um dos compostos mais estudados e receitados do mundo. No caso específico da semaglutida, sua eficácia ampliada surge de uma cadeia de ácidos graxos anexada à molécula, que permite que ela se ligue à albumina sérica e circule no corpo por muito mais tempo.

Mas o monstro-de-gila está longe de ser o único exemplo de como toxinas podem se transformar em aliadas da medicina. Como explica o pesquisador Kini, que dedicou sua carreira ao estudo de venenos, há décadas a ciência encontra soluções terapêuticas em substâncias evoluídas para paralisar, imobilizar ou defender. O peptídeo isolado da jararaca brasileira nos anos 1970, por exemplo, abriu caminho para medicamentos essenciais no controle da pressão arterial, como captopril e enalapril. O mesmo vale para neurotoxinas de caracóis marinhos, hoje base para tratamentos de dor crônica, e para compostos anticoagulantes derivados de sanguessugas medicinais.

O padrão que se repete em todos esses casos é simples e fascinante: toxinas evoluem para produzir efeitos extremamente específicos — e, se a ciência consegue mapear e modular esses efeitos, pode transformá-los em tratamentos de alto impacto. Kini, por exemplo, estuda venenos de cobras e até a saliva de mosquitos para desenvolver terapias capazes de proteger o coração após um ataque cardíaco ou controlar funções renais.

O caso do monstro-de-gila, porém, virou símbolo de algo maior: a interseção entre biologia evolutiva, farmacologia e engenharia molecular. Para um animal que passa boa parte da vida economizando energia e sobrevivendo com poucas refeições, seu veneno acabou se tornando o coração de uma nova era no combate ao diabetes, à obesidade e a outras disfunções metabólicas. E, segundo Kini, estamos apenas arranhando a superfície. Novas ferramentas de pesquisa aceleram o processo de descoberta, mas transformar essas descobertas em medicamentos comerciais ainda exige longos ensaios clínicos e investimentos pesados.

Mesmo assim, a aposta vale a pena. A demanda global por terapias mais eficazes para doenças crônicas só cresce — e, se a história do monstro-de-gila ensina algo, é que soluções revolucionárias podem surgir dos lugares mais improváveis. Nas próximas décadas, é possível que novos “monstros” — sejam eles lagartos, cobras, insetos ou criaturas marinhas — escondam a próxima molécula capaz de mudar a medicina mais uma vez.



Crédito de imagem: Xataka Brasil via ChatGPT, Getty Images via BBC

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