Coreia do Sul levou a rivalidade nas salas de aula ao extremo: 84% das crianças frequentam cursos privados para serem ainda mais competitivas

Com os gastos em educação privada em níveis recordes, há famílias que dedicam mais dinheiro a isso do que com alimentação e moradia

Mercado de trabalho extremamente competitivo força famílias a gastar cada vez mais com cursos privados para crianças na Coreia do Sul / Imagem: Open Government Partnership (Flickr)
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Victor Bianchin

Redator

Victor Bianchin é jornalista.

Se você viajar para a Coreia do Sul e der um passeio por Seul ou Daejeon, é provável que algo chame sua atenção: a quantidade de cartazes das hagwon, as academias privadas frequentadas por crianças para aprender inglês, matemática ou alcançar a nota máxima no suneung, o exame que define o acesso às melhores universidades do país. Em 2020, havia mais de 73 mil dessas academias. Esse número esconde um desafio crucial para a Coreia, uma nação mergulhada em um alarmante declínio demográfico e onde educar filhos se tornou um luxo inacessível.

Há estudos que já apontam a Coreia do Sul como a nação mais cara do mundo para criar um filho. Curiosamente (ou não), também é o país com a menor taxa de natalidade.

Um paradoxo demográfico

Nos rankings sobre natalidade e criação de filhos, a Coreia do Sul se destaca em dois campos que não combinam. Com uma taxa de fecundidade de 0,72 filho por mulher, a república asiática está entre os últimos colocados em natalidade e enfrenta uma situação que as autoridades já classificam como “emergência nacional”, sem rodeios. Sua baixíssima taxa de natalidade representa um problema tão grave que afeta a economia, a sociedade e até a defesa nacional.

Ironias demográficas: a Coreia do Sul é também uma das nações onde criar um filho sai mais caro. É o que mostrou no ano passado um estudo do Instituto YuWa. Segundo informações publicadas pelo jornal sul-coreano Chosun Ilbo, criar um filho até os 18 anos no país tem um custo equivalente a 7,79 vezes o PIB per capita, o que, em valores absolutos, corresponde a cerca de 365 milhões de wons sul-coreanos. Em segundo lugar aparece a China, com um custo 6,9 vezes superior ao PIB per capita, seguida da Alemanha (3,6) e da França (2,2).

Para tentar amenizar essa situação e frear a perda populacional que o país enfrenta, a Coreia do Sul investiu 280 bilhões de dólares ao longo dos últimos 18 anos e implementou uma série de auxílios diretos, incentivos e políticas destinadas a melhorar a qualidade de vida das famílias. As autoridades de Seul chegaram inclusive a considerar a entrega de um “super cheque-bebê” no valor de R$ 450 mil.

Dentro dessa conta pesada, a educação tem um peso considerável. Ainda segundo dados divulgados pelo Chosun Ilbo, os sul-coreanos gastaram quase 115 bilhões de reais em cursos privados para seus filhos em 2022. O valor equivale a mais de R$ 2.318 por criança por mês. A situação é tamanha que, há um ano, o The Korea Times reportou que as famílias da Coreia do Sul estavam destinando mais recursos às aulas particulares e atividades extracurriculares dos filhos do que a outros gastos essenciais, como alimentação ou moradia.

O Chosun Ilbo citava dados da Statistics Korea que mostram que, em lares com situação econômica mais confortável, gasta-se em média 1,14 milhão de wons por mês — o equivalente a R$ 4.822 — com aulas particulares para crianças entre 13 e 18 anos. Esse valor representa uma fatia significativa da renda mensal e equivale praticamente à soma do que se gasta com alimentação (636 mil wons, R$ 2.600) e moradia (539 mil wons, R$ 2.205). E não se trata de algo exclusivo das famílias ricas: nos lares mais humildes, o gasto com aulas particulares também superava o destinado à moradia e à alimentação.

De recorde em recorde

Apesar da grande quantidade de recursos destinados a cursos e atividades extracurriculares, as famílias sul-coreanas não parecem dispostas a reduzir os gastos com educação privada. É o que mostram os dados do Ministério da Educação e do Instituto Nacional de Estatística. Segundo seus cálculos, em 2022 o gasto total com educação privada chegou a cerca de 19,7 bilhões de dólares — um aumento de 10,8% em relação ao ano anterior, que já havia estabelecido um recorde histórico.

Longe de desacelerar, o gasto com educação privada voltou a crescer de forma expressiva no ano passado. Após um aumento interanual de 4,5% — o mais acentuado dos últimos anos —, em 2023 ele alcançou cerca de 20 bilhões de dólares. E isso apesar da queda no número de alunos do ensino fundamental, médio e superior, causada pela baixa natalidade. O motivo: a decisão do governo de aumentar a cota de admissão nas escolas de medicina.

O fenômeno da educação privada na Coreia do Sul não pode ser compreendido sem um conceito fundamental, o hagwon, nome dado às “escolas intensivas”, academias e aulas particulares às quais os estudantes recorrem para reforçar o que aprendem na escola, estudar matérias extras e se preparar para os exames mais importantes, especialmente o suneung, ou CSAT, a exigente prova que dá acesso às universidades do país.

Até mesmo crianças em idade pré-escolar frequentam os hagwon e, com a ajuda de seus professores, aprendem inglês, matemática, taekwondo, natação e como tocar piano. A revista indiana Frontline dedicou um amplo artigo ao tema há três anos, explicando que o conceito remonta ao final do século 19. Em 2020, havia mais de 73 mil centros de tutoria privada espalhados pela Coreia do Sul — metade deles concentrados na capital. A revista Time destaca que, só em Seul, existem mais de 24 mil desses estabelecimentos, o triplo do número de lojas de conveniência.

Dois dados para refletir

Um bom percentual pode dizer mais do que mil palavras. E quando se trata de educação privada na Coreia do Sul, dois números são particularmente reveladores. Em 2017, o Instituto Coreano de Cuidado e Educação Infantil publicou um relatório que indicava que 35,5% das crianças de dois anos e 83,6% das de cinco anos frequentavam academias privadas. Sob esse conceito, estavam incluídos tanto os hagwon tradicionais quanto centros culturais, creches, jardins de infância ou formações realizadas em casa, presencialmente ou online.

Embora o estudo já tenha alguns anos, costuma-se estimar que cerca de 80% dos estudantes sul-coreanos frequentam hagwon ou “escolas intensivas”. A pesquisa do Instituto de Educação Infantil também mostrava que as crianças dedicam um número considerável de horas a essas atividades: as de dois anos participavam de 2,6 sessões por semana, com uma média de 47,6 minutos por aula e as de cinco anos frequentavam 5,2 sessões, cada uma com duração de cerca de 50 minutos.

Para entender o que leva os pais sul-coreanos a matricular seus filhos em academias que consomem centenas de dólares por mês, vale lembrar a reflexão que Kim, uma moradora de Seul e mãe de um adolescente de 13 anos, compartilhou com o The Korea Times em 2023: “Os gastos com tutoria são o maior peso no nosso orçamento familiar. Faço de tudo para reduzir o número de aulas que meu filho frequenta, mas é difícil decidir quais cortar. Cada uma é importante para garantir boas notas, e não quero que ele fique para trás”.

Além da escola, o adolescente frequentava aulas de inglês, matemática, redação e taekwondo. Pode parecer muito, mas Kim afirmava que outros vizinhos faziam isso “e mais ainda” — e admitia o medo de que, na hipercompetitiva Coreia, seu filho acabasse ficando atrás dos demais e comprometesse seu futuro.

De olho no futuro

“Uma boa educação privada, além da escola regular, tem como objetivo garantir que a criança tire boas notas e consiga vaga em uma das melhores universidades”, explicou à DW Han Ye-jung, um advogado com uma filha pequena. “E isso deveria significar um bom emprego, então entrar em uma universidade de primeira linha é crucial, pois garante sucesso na vida”.

Na Coreia, já há quem alerte sobre o excesso de competição nas salas de aula e acredite que os gastos com educação estão saindo do controle; embora também não faltem vozes que reconheçam que, do jeito que o sistema está estruturado, os estudantes têm dificuldade para se preparar para os exames por conta própria. “O fato de todos irem para hagwons me faz sentir como se eu estivesse perdendo alguma coisa se não fizer o mesmo”, admite a aluna Yerim Kim.

Coreia do Sul

Há outro fator-chave: a conciliação. As academias e atividades extracurriculares oferecem aos pais e mães que trabalham na Coreia do Sul uma opção para manter os filhos ocupados. A Frontline, por exemplo, explica que não é raro ver pais esperando em seus carros em Daechi-dong até que seus filhos saiam das aulas — às vezes até as dez da noite, quando as academias fecham.

Provavelmente ciente dessa necessidade, em fevereiro o governo anunciou a ampliação dos programas extracurriculares voltados para crianças do ensino fundamental. O objetivo: que funcionem até as oito da noite. Normalmente, os alunos do primeiro ano escolar terminam suas aulas por volta da uma ou duas da tarde.

Com polêmica incluída

O papel da educação privada e seu alto custo também vêm acompanhados de certa polêmica. Primeiro, porque pode representar um obstáculo adicional na hora de incentivar a natalidade em uma nação mergulhada em um inverno demográfico tão severo que já é chamado de "emergência nacional". Segundo, pelo peso que representa tanto para as crianças quanto para as economias domésticas.

E terceiro, pelo impacto no próprio sistema educacional e na igualdade de oportunidades. “É difícil se preparar sozinho para os exames quando os hagwons oferecem tanto material de estudo que de outra forma você não conseguiria”, reconhece Kim, aluna que frequenta um desses centros. O governo já tentou regular a atuação das academias privadas no passado, com sucesso variável, sendo que algumas são acusadas de “se aproveitar da ansiedade” dos pais que querem garantir uma boa formação e empregos de qualidade para seus filhos na exigente sociedade sul-coreana.

Imagens | Open Government Partnership (Flickr) 1 e 2

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.

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