Nos últimos tempos, os conflitos entre grandes projetos turísticos e ecossistemas frágeis têm se multiplicado: desde mega-resorts construídos ao lado de manguezais no Caribe, que destroem barreiras naturais, até hotéis erguidos em áreas de desova de tartarugas ou cabanas sem regulamentação que degradam reservas no Nepal e no Sri Lanka. Cada caso revela o mesmo padrão: a promessa de desenvolvimento econômico imediato versus o risco de danificar paisagens que não se recuperam.
O último: um safári que prejudica a vida de muitos animais.
Um acampamento no pior local possível
O New York Times noticiou recentemente o caso. A inauguração do Ritz-Carlton Masai Mara Safari Camp, com suas suítes de US$ 3,5 mil por noite, piscina privativa e vistas privilegiadas do Rio Sand, desencadeou uma controvérsia que vai muito além do turismo de elite: para os líderes Maasai, guias locais e ecologistas, o resort foi construído em uma das últimas áreas intocadas e bem no coração de um corredor usado por milhões de gnus, zebras e gazelas para migrar anualmente entre o Serengeti e o Masai Mara.
O que a Marriott apresentou como uma incursão “histórica” em safáris de luxo é percebido por muitos como a ameaça mais séria a um corredor natural que sustenta um dos espetáculos ecológicos mais importantes do planeta. A denúncia apresentada pelo acadêmico Maasai Meitamei Olol Dapash argumenta precisamente isso: que o hotel foi construído em uma área crítica onde décadas de dados de monitoramento confirmam um fluxo migratório contínuo e insubstituível.
Turismo descontrolado
O Ritz-Carlton não é um caso isolado, mas o símbolo mais recente de crescimento explosivo: de 95 campings em 2012 para 175 em 2024, um aumento que especialistas consideram incompatível com a capacidade ecológica do Masai Mara. O aumento do turismo multiplicou o número de veículos que perseguem animais fora das estradas, danificam a vegetação e encurralam predadores, como no vídeo viral de 2023 em que dezenas de carros cercam duas chitas enquanto elas caçam.
A isso se somam o esgoto despejado nos rios, a poluição luminosa dos campings e o ruído que perturba as rotas noturnas da vida selvagem. Diversas espécies já desapareceram do Masai Mara (como o cão-selvagem-africano e o órix) em um processo que pesquisadores descrevem como uma relação inversamente proporcional: quando a indústria do turismo cresce exponencialmente, a vida selvagem declina na mesma proporção.
Permissão excepcional
A indignação cresceu quando foi revelado que a construção do Ritz-Carlton foi autorizada apesar da moratória de 2023 que proibia a construção de novos hotéis dentro da reserva. A aprovação foi baseada em uma "isenção única" assinada pelo chefe de gabinete, o então presidente William Ruto, uma medida que ativistas interpretam como a porta de entrada para uma avalanche de projetos de luxo sem controle.
Ainda mais perturbadora, segundo o Times, é a controvérsia em torno da suposta consulta comunitária: assinaturas de Maasai alegando que não participaram de nenhuma reunião, documentos questionáveis e uma atmosfera de vulnerabilidade que leva muitos a crer que os poderosos presumiram que ninguém protestaria. Para os habitantes do Mara, a sensação é de que o processo deliberadamente ignorou etapas essenciais de avaliação ambiental e participação local.
Ritz-Carlton
Muro para manter os animais afastados
O acampamento, ao que parece, está cercado por um muro improvisado de terra e grama que impede a visão do interior e que, segundo guias locais, já apresenta sinais de animais tentando atravessá-lo ou escalá-lo. Se mantido de pé, também será um símbolo inquietante: um refúgio luxuoso protegido do restante do meio ambiente e das comunidades que vivem a poucos metros de distância.
Para muitos guias Maasai, a barreira representa uma ideia perigosa: a de que os visitantes podem desfrutar do ecossistema sem ter que confrontar seus problemas reais, isolados da pressão que os acampamentos exercem sobre a terra. Conservacionistas africanos vêm defendendo há anos modelos de hospedagem com impacto mínimo (menos quartos, estruturas desmontáveis, impacto reversível) e uma transição para áreas de conservação menores e mais sustentáveis, mas a presença de grandes redes hoteleiras ameaça reverter essa tendência.
O paradoxo é profundo: as comunidades Maasai sabem que o turismo é sua principal fonte de renda e não desejam que ele pare. Hospitais, escolas e bolsas de estudo existem graças a ele. O que eles exigem é um modelo que não destrua o que os sustenta. Para muitos, o problema não é o Marriott em si, mas sua localização exata: instalar um resort permanente em um corredor migratório cria um precedente perigoso que pode abrir caminho para futuras construções em áreas igualmente sensíveis.
Jovens ativistas como Emmanuel Sananka insistem que a luta não é contra o turismo, mas contra um modelo que ignora as vozes locais e prioriza o lucro em detrimento da conservação. O Marriott, em resposta, argumenta que seu empreendimento gera empregos (90% dos funcionários são quenianos e 40% são locais) e cumpre as normas ambientais, mas a desconfiança persiste.
Ecossistema à beira do colapso
Em última análise, o conflito revela um choque entre duas visões do Masai Mara: a do luxo global, que o vê como um cenário exclusivo, e a das comunidades e cientistas que o consideram um sistema vivo e frágil, onde cada metro quadrado importa. O Ritz-Carlton personifica esse ponto de tensão: um projeto grande demais, fixo demais e localizado no pior lugar possível.
A decisão judicial determinará não apenas se o acampamento permanece ou é removido, mas também o rumo de todo o modelo de turismo do Masai Mara para a próxima década. Se a Grande Migração continuará como tem acontecido há milhões de anos dependerá do resultado... ou se começará a se fragmentar sob a própria pressão humana que a admira.
Imagem | Vencha, Ritzcarlton
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