Houve um tempo em que os grandes consoles não aspiravam a ser apenas dispositivos lúdicos, e seus compradores não se contentavam em ser usuários passivos de um aparelho totalmente controlado pelo fabricante.
Duas décadas atrás, os grandes consoles de videogame ofereciam algo que hoje pareceria um sonho: suporte oficial para instalar Linux e a possibilidade de convertê-los em verdadeiros computadores. Essa abertura contrasta drasticamente com o cenário atual, onde os PlayStation 5 e Xbox Series X são ecossistemas fechados.
O sonho da Sony: o PlayStation 2 como PC
Em 2002, a Sony lançava seu kit oficial "Linux para PlayStation 2": por US$ 229 (cerca de R$ 1.200), os usuários podiam transformar seu PS2 em um computador funcional com Linux como sistema operacional. O kit incluía um disco rígido de 40 GB, um adaptador de rede, teclado, mouse e um cabo VGA especial, junto com uma distribuição de Linux em DVD.
Embora instalar Linux no PS2 fosse complicado e seu desempenho limitado pela pouca RAM, permitia acessar um ambiente de desktop completo, editar textos, navegar na internet e experimentar softwares para fins educacionais. Foi uma oportunidade única para aprender programação ou iniciar-se no mundo Linux a baixo custo, apesar de não ter sido adotado em massa.
O PlayStation 3 e a promessa do "OtherOS"
A Sony levou essa filosofia adiante com o PlayStation 3, permitindo desde seu lançamento a instalação de outros sistemas operacionais, como GNU/Linux, graças à opção "OtherOS" no menu XMB.
O PS3 não vinha com Linux pré-instalado, mas oferecia compatibilidade oficial com distribuições como Yellow Dog Linux, Debian, Fedora, Gentoo e Ubuntu. O console podia se tornar um potente servidor ou até mesmo parte de um cluster de computação — como demonstrou a Força Aérea dos EUA, que usou 1.760 PS3s para um supercomputador experimental.
No entanto, em 2010, a Sony removeu a funcionalidade 'OtherOS' por meio de uma atualização de firmware, alegando motivos de segurança: isso provocou uma forte reação da comunidade, ações judiciais (pois havia sido um dos "atrativos" usados para promovê-la em seu lançamento) e um acordo de compensação no qual a Sony pagou até US$ 65 (cerca de R$ 350) a cada comprador afetado nos Estados Unidos.
A retirada dessa função, de qualquer forma, marcou o princípio do fim do sonho de consoles abertos.
Linux "não oficial" no Xbox
Depois disso, a comunidade foi encontrando formas de instalar Linux recorrendo a mod chips e adaptações caseiras do hardware. Assim, por exemplo, o projeto 'Xbox Linux' permitiu converter um Xbox em um PC Linux de baixo custo, ideal para clustering ou para usar como centro multimídia.
No entanto, o processo exigia modificar o console (o que anulava a garantia) e gerava gastos adicionais em chips de modificação, discos rígidos e periféricos.
Por que perdemos esse suporte?
A principal razão para o abandono da abertura ao Linux foi a segurança e o controle dos ecossistemas. As empresas temiam que abrir o hardware facilitasse a cópia não autorizada de jogos ou que suas plataformas fossem usadas de formas não previstas.
Também influenciou a mudança no modelo de negócio: os consoles atuais apostam em lojas digitais fechadas, assinaturas e monetização contínua, modelos incompatíveis com dispositivos que os usuários pudessem modificar livremente.
Além disso, a base de usuários interessados em usar um console como computador sempre foi minoritária, e o suporte ao Linux não trazia benefícios imediatos comparáveis à venda de videogames e serviços online.
O que poderia ter sido
Imaginar um PS5 ou um Xbox Series X capazes de iniciar nativamente uma distribuição Linux — e com a potência de suas CPUs e SSDs ultrarrápidos — é sonhar com um híbrido entre supercomputador e console de videogame. Poderíamos ter:
- Centros de desenvolvimento de software acessíveis.
- Estações multimídia personalizadas ao extremo.
- Ecossistemas de "homebrew" e experimentação sem restrições.
Hoje, essa liberdade foi sacrificada em favor da 'segurança', do controle corporativo e da rentabilidade.
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