Quando Thomas Dohme, CEO do GitHub, publicou seu manifesto "Desenvolvedores, Reinventados", provavelmente não imaginava o impacto de sua declaração mais controversa: "Você precisa abraçar a IA ou estará fora" (referindo-se a ficar "fora do mercado"). Para o GitHub — e, por extensão, para a Microsoft — o futuro do desenvolvimento de software está tão intrinsecamente ligado à IA que aqueles que não a adotarem ficarão para trás.
No entanto, enquanto os discursos executivos promovem veementemente essa visão, uma parcela significativa do ecossistema de software de código aberto reage com uma mistura de preocupação e cansaço.
E alguns projetos já estão tomando medidas radicais: abandonando o GitHub, a maior plataforma de desenvolvimento colaborativo do mundo.
O ultimato do CEO do GitHub: adaptar-se ou ir embora
A mensagem de Dohme não deixa espaço para interpretações amenas. Segundo o próprio texto, o GitHub entrevistou 22 desenvolvedores que já integram IA em seu trabalho diário. Com base nesse depoimento, o CEO pinta um cenário no qual a IA irá além da simples escrita de trechos de código e automatizará até 90% do desenvolvimento em 2 a 5 anos, transformando o papel do programador: menos escrita de código, mais design de sistemas, gerenciamento de agentes, verificação de resultados e domínio da IA.
Dohmke chega a sugerir que muitos não vão querer se adaptar, e tudo bem... contanto que encontrem outro emprego. A retórica soa mais como um ultimato do que um plano de transição, é claro. Embora a Microsoft, sua controladora, já tivesse adotado um tom semelhante: Julia Liuson, outra executiva da empresa, chegou a afirmar que "usar IA não é mais opcional" em uma comunicação interna.
GitHub sob escrutínio
O discurso corporativo pró-IA contrasta fortemente com a experiência cotidiana de muitos mantenedores de projetos. E, em 2025, um caso se tornou emblemático: os desenvolvedores da linguagem de programação Zig romperam publicamente com o GitHub. O gatilho foi algo aparentemente insignificante: um script defeituoso do GitHub Actions chamado safe_sleep.sh.
Como explicou Matthew Lugg, um dos principais desenvolvedores do Zig: "O bug [...] usa 100% da CPU o tempo todo e roda sem parar". Pior ainda, o bug vinha aparecendo em vários relatórios há anos e podia bloquear um processo por centenas de horas, degradando completamente os servidores de integração contínua.
O pior é que a correção existia, havia sido proposta... e o GitHub a deixou parada por um ano sem revisões, chegando a fechá-la automaticamente com um bot, antes de reabri-la e, finalmente, integrá-la ao código em agosto de 2025.
"O GitHub não demonstra mais compromisso com a excelência técnica".
Andrew Kelly, presidente da Zig Software Foundation, finalmente anunciou a migração completa do projeto para o Codeberg, uma plataforma sem fins lucrativos que dobrou o número de membros em menos de um ano. Ele alegou que o GitHub está negligenciando a manutenção de ferramentas críticas e que os sistemas de integração contínua se comportam de maneira errática (Kelly chama isso de "vibe-scheduling", um trocadilho com "vibe coding").
Sua conclusão é que a obsessão do GitHub/Microsoft com IA está desviando recursos e atenção de trabalhos essenciais de engenharia. Na verdade, a saída de Zig não é um caso isolado. O criador do navegador Dillo também anunciou sua saída do GitHub por motivos semelhantes:
- Excesso de JavaScript na interface;
- Falta de ferramentas de moderação adequadas;
- Dependência excessiva de tecnologias proprietárias;
- Preocupação com a abordagem corporativa à IA generativa, que, segundo ele, está "destruindo a web aberta".
Ao mesmo tempo, o Codeberg — a alternativa baseada na comunidade — dobrou o número de membros em menos de um ano, passando de 600 para mais de 1.200.
Por que tantos desenvolvedores preferem abandonar o GitHub?
Em resumo, neste caso, duas grandes preocupações convergem:
- O risco de dependência tecnológica: a visão do GitHub coloca a IA proprietária, corporativa e centralizada no centro do desenvolvimento futuro. Isso gera desconforto em comunidades que defendem a transparência do código, a autonomia de suas ferramentas e a sustentabilidade a longo prazo;
- A percepção de negligência: quando erros básicos no GitHub Actions permanecem sem solução por anos, os mantenedores interpretam isso como um sinal de que a plataforma, que centraliza 90% de sua infraestrutura, não prioriza mais a confiabilidade. Aos olhos de muitos, o GitHub se preocupa mais com o Copilot do que com os desenvolvedores que mantêm projetos reais.
Números da Microsoft: por que a IA domina a agenda
Enquanto isso, o GitHub ostenta números que explicam o entusiasmo corporativo:
- Em 2024, o GitHub Copilot representou 40% do crescimento anual da receita da empresa.
- A Microsoft relatou mais de 1,3 milhão de assinantes do Copilot, um crescimento de 30% em relação ao trimestre anterior.
- Em 2025, Nadella afirmou que já havia mais de 15 milhões de usuários do Copilot, quatro vezes mais do que no ano anterior.
Para uma empresa, esses números não deixam dúvidas: a IA não é mais uma "aposta", é a mina de ouro do momento, não importa o quanto alguns gerentes de grandes projetos de código aberto reclamem.
Imagem de capa | Marcos Merino usando IA
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