Nosso Sistema Solar ainda hoje mostra as cicatrizes de seu nascimento. O que parece vazio, interrompido apenas pelos planetas gigantes como a Terra, Marte e, naturalmente, os gigantes gasosos, ainda conta, mais de 4 bilhões de anos depois, como tudo começou.
Pois, longe do banho de Sol no centro, escondem-se fragmentos de uma época em que tudo teve início — tão pequenos e distantes que conhecemos apenas alguns deles: os planetas fósseis.
“2023 KQ14” é o nome oficial do novo integrante, mas seus descobridores o chamam de Ammonite. Ele abala uma antiga esperança, pois um planeta hipotético do Sistema Solar perde, literalmente, espaço — ou foi condenado, há um tempo inimaginavelmente remoto, a uma viagem rumo ao nada.
Um antiquíssimo corpo celeste
Para além de Netuno, o oitavo planeta do nosso Sistema Solar, estende-se uma vastidão quase desconhecida. Foi justamente aí que, segundo o artigo dos pesquisadores, foi descoberto o planeta fóssil Ammonite.
Atualmente, sua distância em relação ao Sol é de cerca de 70 unidades astronômicas (UA), mas, segundo simulações, ela pode chegar a até 440 UA. Uma UA equivale à distância média entre a Terra e o Sol, aproximadamente 150 milhões de quilômetros.
Uma diferença tão grande entre o periélio e o afélio ocorre quando um objeto segue uma órbita fortemente elíptica ao redor do Sol. Imagine um círculo que é achatado.
O que sabemos sobre 2023 KQ14, ou “Ammonite”
Classificação: Objeto transnetuniano (TNO) com órbita muito alongada, também conhecido como sednoide. Netuno orbita a cerca de 30 UA de distância. O ponto mais próximo do Sol de Ammonite fica a aproximadamente 66 UA (periélio) — e o mais distante (afélio), a cerca de 438 UA. Esses extremos o diferenciam de Plutão ou de outros planetas anões no Cinturão de Kuiper.
Atualmente, conhecemos menos de dez planetas anões desse grupo. No vídeo abaixo, é possível conhecer os quatro mais importantes, incluindo o recém-chegado, e ver também quão extremas são suas órbitas.
Período orbital: cerca de 4.000 anos em uma órbita fortemente elíptica
Tamanho: estimado entre 220 e 380 quilômetros de diâmetro
Origem: provavelmente formado há cerca de 4,6 bilhões de anos, no jovem Sistema Solar.
Conhecemos apenas quatro corpos celestes desse tipo: Sedna, Leleākūhonua, 2012 VP113 e agora também Ammonite.
O que diferencia um planeta anão de um planeta é que ele não limpou sua órbita. Em outras palavras: ao redor de corpos como Plutão ainda orbitam inúmeras rochas e asteroides junto com ele em torno do Sol.
Terra, Marte, Vênus e outros, por sua vez, são massivos o suficiente para impor ordem: esse tipo de material foi, ao longo dos milênios, atraído pela gravidade e colidiu com eles, ou então foi lançado para órbitas mais distantes.
Um fóssil do Sistema Solar bebê
Mesmo medindo apenas algumas centenas de quilômetros de diâmetro, Ammonite deixa, do ponto de vista científico, uma marca considerável. Com sua idade estimada em mais de 4,5 bilhões de anos, ele representa uma oportunidade de observar a fase de nascimento do nosso Sistema Solar.
É daí que vem o título de “planeta fóssil”, como uma associação linguística com os fósseis — restos petrificados de vida na Terra. Ele poderia ter feito parte, como um dos bilhões de fragmentos, de um dos grandes corpos celestes. Mas o acaso cósmico fez com que, por algum motivo, ele permanecesse até hoje sozinho, como um planeta anão.
Devido às suas órbitas extremas, distantes e geralmente pouco perturbadas, esses objetos funcionam como cápsulas do tempo. Eles contam, praticamente inalterados, a história de uma era logo após a nuvem de gás ao redor do nosso Sol recém-nascido se condensar em rocha.
No entanto, a órbita exata de Ammonite causa sobrancelhas erguidas — pois transforma esse bloco celeste em um verdadeiro estraga-prazeres para os teóricos.
O Planeta Nove poderia ser outro gigante gasoso ou um planeta rochoso expulso para as regiões externas. No último caso, a ciência parte do pressuposto de que se trata de uma versão mais massiva da Terra, uma chamada superTerra. É pouco provável que seja mais leve — isso contrariaria a maioria dos modelos teóricos. (Imagem | stock.adobe.com – Vadimsadovski)
Ammonite, o estraga-prazeres
Ammonite contradiz suposições anteriores, ocupando agora uma lacuna que pode acabar de vez com um fantasma da astrofísica estelar: o Planeta Nove. Até agora, nunca havíamos observado um objeto como esse — e foi assim que surgiu a hipótese de que “falta” um grande planeta, provavelmente várias vezes mais massivo que a Terra. Ele deveria estar oculto nas regiões mais distantes do Sistema Solar. Para entender essa conclusão, precisamos observar a estrutura do Sistema Solar.
Podemos distinguir, de forma geral, quatro regiões:
- O Sistema Solar interno, de Mercúrio até Marte;
- O cinturão de asteróides, que separa os planetas rochosos dos gigantes gasosos Júpiter, Saturno, Urano e Netuno;
- A região dos antigos blocos rochosos com órbitas elípticas extremamente alongadas — os objetos transnetunianos (TNOs); em seguida, vem o Cinturão de Kuiper, outra concentração de asteroides e planetas anões, onde se encontra, por exemplo, Plutão (um TNO, mas com uma órbita bem mais circular que a de Ammonite);
- O que atravessa o Cinturão de Kuiper alcança as regiões mais externas do Sistema Solar. É aí que se encontra o afélio de Ammonite. Além disso, começa o espaço interestelar e, mais adiante, a Nuvem de Oort — o último anel rochoso que circunda o Sol, a até 100.000 UA de distância.
Além de Netuno, no Cinturão de Kuiper e entre os TNOs com órbitas extremamente elípticas, havia até agora uma lacuna — a chamada “lacuna q”.
Na ilustração, é possível ver claramente o cinturão de asteroides entre Marte e Júpiter, assim como, mais distante (à direita), o cinturão de Kuiper. (Fonte | NASA)
Mas Ammonite a preenche, já que sua órbita, simplificando, está inclinada de forma diferente. Assim, ele atravessa zonas que um hipotético Planeta Nove deveria manter livres. Três dos quatro sednóides oscilam aproximadamente na mesma direção — Ammonite, não.
Ao longo de bilhões de anos, estabeleceu-se no Sistema Solar uma ordem relativamente clara entre as estruturas de diferentes escalas. Há movimento, e nada está gravado em pedra, mas as regiões individuais hoje são bem reconhecíveis, as forças são conhecidas — exceto por esse enigma central, lá nas fronteiras do espaço.
De uma região não tão distante, aliás, veio um dos impactos mais importantes para a história da vida na Terra — Chicxulub, o cometa que supostamente extinguiu os dinossauros. E os asteroides não apenas podem extinguir a vida, como também, teoricamente, trazê-la — embora essa possibilidade tenha surgido mais por meio da própria busca, em um dos nossos achados potencialmente mais raros.
O que Ammonite significa para a pesquisa daqui para frente?
Por ora, continua valendo: o Planeta Nove é — e permanece — uma hipótese possível, ainda que os novos dados reduzam a probabilidade de sua existência.
Uma explicação possível para as três órbitas semelhantes já conhecidas — e a agora observada diferença em um objeto desse tipo — aponta para uma catástrofe: algo teria afetado gravitacionalmente a borda do sistema há 4 bilhões de anos, ou até mesmo teria passado rente a ele, segundo a teoria apresentada no estudo.
Os planetas teriam então alterado suas órbitas de forma drástica, junto com milhões de objetos, como Ammonite. Segundo os pesquisadores, é até possível que tenhamos perdido o chamado Planeta Nove naquela ocasião: ele poderia ter sido arrastado ou expulso do Sistema Solar por um impulso gigantesco.
Alguns TNOs (objetos transnetunianos) — mais distantes do evento — permaneceram em suas órbitas habituais, onde o Planeta Nove os havia colocado, enquanto outros deslizaram para as trajetórias atuais, liberadas após o cataclismo.
O Planeta Nove, portanto, pode ter sido mais do que uma simples construção teórica, vagando sozinho há bilhões de anos pelo espaço interestelar como um chamado “planeta rebelde”.
Clareza, enfim, graças a um novo telescópio?
Um único instrumento, localizado nos Andes chilenos, em breve terá o papel principal em desvendar esse mistério do nosso Sistema Solar: o Observatório Vera C. Rubin (VRO). Uma de suas missões é realizar o mapeamento mais preciso possível da nossa vizinhança estelar.
Assim, a esperança de milhares de pesquisadores repousa sobre o VRO — a de finalmente esclarecer o que exatamente acontece naquela escuridão desconhecida além de Netuno. Será que encontraremos mais “irmãos” ou “irmãs” de Ammonite? Outros planetas anões como Plutão, com órbitas relativamente circulares? Ou estará o fantasmagórico Planeta Nove escondido bem longe dali?
De toda forma, Ammonite restringiu os possíveis esconderijos — e, de certo modo, até ajuda a longo prazo na busca. Ou talvez tenha fornecido, em retrospecto, a explicação de como perdemos nosso nono planeta para sempre.
Este texto foi traduzido/adaptado do site Game Star.
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