Bat-bebida: a tequila depende muito mais de morcegos mexicanos do que você imaginava

O famoso destilado só existe graças a um pacto natural de milhões de anos e que agora está ameaçado pela perda de habitat, pela agricultura intensiva e pela crise climática

Crédito de imagem: Xataka Brasil via Perplexity
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João Paes

Redator
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João Paes

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Escreve sobre tecnologia, games e cultura pop há mais de 10 anos, tendo se interessado por tudo isso desde que abriu o primeiro computador (há muito mais de 10 anos). 

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No coração árido do deserto de Chihuahua, no norte do México, cavernas frias e escuras escondem milhares de morcegos que, a cada primavera, iniciam uma jornada épica. Fêmeas prenhas voam mais de 1.600 km até o sudoeste dos Estados Unidos, alimentando-se à noite para sustentar a viagem e a gestação. Entre suas paradas favoritas estão as flores amarelas e felpudas do agave — planta que floresce apenas uma vez em décadas e que, ironicamente, sustenta um dos maiores símbolos culturais e econômicos do país: a tequila.

O problema é que essa relação está em risco. De 168 espécies avaliadas, 42 agaves selvagens já são considerados ameaçadas ou severamente ameaçadas, reduzindo o alimento dos morcegos. E, com menos morcegos, menos agaves são polinizados — um ciclo perigoso que ameaça a própria base da indústria de tequila e mezcal. Para quebrá-lo, pesquisadores e comunidades estão plantando milhares de agaves ao longo do chamado “corredor do néctar”, garantindo alimento para os morcegos migratórios e restaurando um ecossistema inteiro.

Há histórias de sucesso, como a recuperação do morcego-de-nariz-longo-menor, que saltou de 1.000 indivíduos em 1988 para cerca de 200 mil hoje. Mas outras espécies seguem em queda. O morcego-de-nariz-longo-maior perdeu metade de sua população em 20 anos. Já o morcego-de-língua-comprida, também polinizador de agaves, está próximo do status de ameaça.

Parte do problema é humano — e direto. Qualquer perturbação em cavernas pode levar milhares de morcegos a abandonarem seus abrigos. A erosão das florestas secas elimina tanto o habitat quanto as plantas que servem de alimento. E o agronegócio de agave, voltado para maximizar produção, impede o florescimento das plantas: produtores cortam o broto antes da floração para obter pinhas maiores, e a reprodução se limita a clones genéticos. O resultado é um agave cada vez menos diverso e mais vulnerável a pragas, doenças e ao clima mais seco.

Crédito de imagem: Alamy via BBC

“Sem os morcegos, tequila e mezcal nem existiriam”, resume o biólogo Marco Antonio Reyes Guerra, do Bat Friendly Project em conversa com a BBC.

É por isso que movimentos como o Agave Restoration Initiative, da organização Bat Conservation International (BCI), tornaram-se vitais. Desde 2018, elas já plantaram mais de 180 mil agaves selvagens e mantêm outros 150 mil em viveiros. Agricultores parceiros do projeto Bat Friendly se comprometem a deixar pelo menos 5% dos agaves florescerem — o suficiente para alimentar morcegos famintos e permitir que as plantas se reproduzam naturalmente. De fazendas assim, já saíram 300 mil garrafas de tequila e mezcal certificados como “amigos dos morcegos”.

Mas a conservação não vive só de plantio. No México, mais de metade das terras são de propriedade comunitária, o que significa que o esforço só funciona se todos participarem. E isso começa por mudar percepções. Muitas comunidades confundiam os polinizadores de néctar com morcegos-vampiros, queimando cavernas inteiras por medo. Programas de educação ambiental — que já alcançaram mais de 1,5 milhão de pessoas — viraram o jogo. Hoje, moradores protegem cavernas, impedem visitas que possam assustar as colônias e até monitoram espécies ameaçadas.

Esse envolvimento local já rende frutos. Se antes certas regiões tinham poucos ou nenhum agave florido, agora é possível ver manchas amarelas surgindo no meio do deserto — e os filhotes de morcego estão aparecendo com mais frequência. A recuperação ainda é lenta, mas estável, algo considerado uma vitória gigantesca após décadas de declínio.

Ainda assim, a restauração não termina no agave. Morcegos dependem também de ceibas, ipoméias e cactos como o saguaró. Para que o corredor do néctar volte a florescer em toda sua extensão, o ecossistema precisa ser reconstruído como um mosaico diverso — um trabalho de anos, talvez décadas.

O importante é saber que tudo está conectado: morcegos saudáveis significam agaves saudáveis, que significam tequila saudável — tanto para quem vive dela quanto para quem só a aprecia ocasionalmente. Proteger esses pequenos polinizadores não é apenas salvar uma espécie: é garantir o futuro de uma paisagem, de uma cultura inteira e, claro, daquele gole dourado que atravessou fronteiras e se tornou parte do mundo.



Créditos de imagens: Xataka Brasil via Perplexity, Alamy via BBC

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