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Quando os EUA anunciaram tarifas para todo o planeta, algo muito estranho aconteceu, que revela como a geopolítica moderna mudou

O fato de os países estarem abrindo seus céus para a Starlink em meio a ameaças econômicas revela como a geopolítica moderna já não se trava apenas em embaixadas

Países estão concedendo aprovações regulatórias para a Starlink como forma de agradar a Casa Branca / Imagem: Mike Lewinski
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Victor Bianchin

Redator
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Victor Bianchin é jornalista.

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Nas últimas semanas, vimos como a guerra de tarifas impactou diversos países, incluindo aliados dos EUA, como Canadá. Agora, documentos vazados revelaram algo realmente estranho. Quando Washington anunciou as tarifas, várias nações tomaram a mesma medida: contrataram a Starlink, de Elon Musk.

A diplomacia dos satélites

O Washington Post reportou que a administração Trump implementou uma estratégia que combina pressão tarifária, diplomacia econômica e promoção empresarial com nome próprio: Starlink, o serviço de internet via satélite de Elon Musk. Documentos diplomáticos obtidos pelo veículo revelam que vários países em desenvolvimento aceleraram licenças e autorizações para a operação da Starlink após receberem ameaças de tarifas punitivas ou durante negociações comerciais com Washington.

O caso mais ilustrativo ocorreu no Lesoto, onde o governo concedeu à Starlink sua primeira licença nacional apenas duas semanas depois de Trump impor uma tarifa de 50% sobre as importações do país, fazendo isso explicitamente como um gesto de boa vontade para com os Estados Unidos no contexto de negociações bilaterais.

O fenômeno não é isolado. O Post relatou que, da Índia a Bangladesh, passando por Somália, Vietnã, República Democrática do Congo e Camboja, os documentos obtidos mostram como diplomatas americanos promoveram ativamente a aprovação regulatória da Starlink. Embora, em nenhum caso, tenha sido documentada uma exigência direta de favores em troca de alívio tarifário, fica clara a orientação de autoridades de alto escalão, como o secretário de Estado Marco Rubio.

Como? Utilizando as missões diplomáticas para facilitar a entrada de empresas americanas (especialmente a Starlink) em outros países, o que é parte do esforço para “manter e ampliar sua vantagem como pioneiros” frente a competidores chineses e russos no espaço. Houve até reuniões na Turquia, Djibuti e Mali em que embaixadores e funcionários apresentaram argumentos favoráveis à entrada da Starlink em nome da segurança nacional e da liderança tecnológica dos Estados Unidos.

Negociações comerciais disfarçadas

No Camboja, o padrão se repetiu com relativa clareza. Após a imposição de uma tarifa de 49%, autoridades locais se reuniram com a Câmara de Comércio americana em busca de saídas diplomáticas. Um dos “gestos sugeridos” foi permitir a entrada da Starlink e facilitar o acesso sem tarifas para veículos Ford. Outro documento anterior já mostrava que o governo cambojano cogitava favorecer a Boeing e a Starlink como forma de contrapeso diante do medo de sanções comerciais.

O mesmo ocorre na Índia, onde as aprovações regulatórias para a Starlink foram aceleradas com a expectativa de que contribuirão para consolidar um acordo comercial com a Casa Branca. Como explicou uma fonte diplomática ao Post, esses movimentos não são discutidos abertamente como condições formais, mas são entendidos como lubrificantes políticos essenciais para manter relações bilaterais fluidas.

No Departamento de Estado, a defesa pública dessas manobras se baseia na narrativa da supremacia tecnológica americana frente a rivais estratégicos. Em suas declarações, fontes oficiais descreveram a Starlink como “um produto americano revolucionário” que fornece conectividade a zonas remotas do mundo e que deveria ser favorecido por “todo patriota”.

O argumento geoestratégico é reforçado pela ameaça explícita de que, se os Estados Unidos não apoiarem seus próprios líderes tecnológicos, serão as empresas chinesas que preencherão esse vazio. Especialistas do setor, como Evan Swarztrauber, concordam: promover a Starlink é um ato de contenção frente a Pequim. Na verdade, boa parte do entusiasmo governamental pela rede de Musk se justifica por seu papel como contrapeso direto aos provedores de satélite da China e da Rússia, vistos como ameaças à segurança nacional.

Conflito de interesses

Não há dúvidas de que o vínculo entre o Estado americano e a Starlink levanta questões éticas. Elon Musk, além de proprietário da empresa, é um aliado político de Trump e contribuiu com 277 milhões de dólares para campanhas republicanas. Recentemente, ocupou um cargo dentro do governo supervisionando o DOGE.

Essa sobreposição entre interesses privados, apoio político e diplomacia oficial fez com que muitos países não conseguissem distinguir entre as demandas de Washington e os interesses de Musk. Como alerta ao Post o pesquisador W. Gyude Moore, em muitos governos africanos “seria muito difícil separar” as pressões tarifárias do impulso à Starlink, especialmente sabendo que qualquer resistência aos negócios de Musk poderia ser vista como um desafio à Casa Branca.

O veículo americano relatou que, em essência, a estratégia de Washington transforma a expansão internacional de uma empresa privada em instrumento direto de sua política externa. Embora, no passado, tanto a administração Trump quanto a de Biden tenham promovido o uso de satélites de órbita baixa (LEO) para conectar embaixadas e áreas remotas, os documentos vazados mostram que o foco atual não é apenas adotar essa tecnologia, mas persuadir países aliados a escolher serviços específicos como a Starlink.

Sob Trump, os documentos enviados por Rubio ampliaram essa pressão ao classificar as redes chinesas e russas como ameaças à segurança, o que permitiu justificar a promoção de provedores americanos nesses termos geopolíticos. Talvez por isso, além da retórica, o que emerge é uma imagem cada vez mais difusa entre o interesse nacional e o corporativo, em que as barreiras entre diplomacia, mercado e favoritismo político se dissolvem em favor da liderança tecnológica.

Imagem | Mike Lewinski

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.

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