Em 1878, um sultão de Bornéu e alguns britânicos assinaram um acordo. Agora, exigem que a Espanha pague 15,5 bilhões de euros

Um acordo entre um sultão em Bornéu e empresários britânicos em 1878 acabou se transformando em um conflito internacional

a ilha de Bornéu / Imagem: Wikimedia Commons (Kawaputra)
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Victor Bianchin

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Victor Bianchin é jornalista.

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Em um canto do sudeste asiático, a ilha de Bornéu foi palco de um enredo histórico que parece saído de um romance. O que começou há mais de um século como um acordo comercial entre um sultão local e empresários europeus hoje se traduz em disputas bilionárias e arbitragens internacionais que envolvem a Espanha, a Malásia e os descendentes do sultanato de Joló.

O surpreendente é que a origem de toda essa confusão remonta a um detalhe que muitos deixariam passar despercebido. Como, na época, a ilha estava sob jurisdição espanhola, a confusão judicial agora respinga na Espanha, mesmo um século e meio depois. 

Assinatura do acordo e movimentos coloniais

Em 1878, a ilha de Bornéu estava sob administração espanhola em certas áreas, embora a autoridade real pertencesse ao sultão de Joló, governante de um pequeno reino muçulmano localizado ao norte dessa ilha.

Naquele ano, o sultão Jamalul Alam assinou um acordo com dois empresários britânicos, o barão de Overbeck e Alfred Dent, para a exploração dos recursos naturais da região. No entanto, para os descendentes do sultão, aquele contrato tinha caráter de arrendamento, enquanto para os britânicos representava uma cessão definitiva. Primeiro ponto de discórdia.

A Espanha, como potência administradora da época, apenas registrou seus limites e não teve participação alguma no acordo.

Reprodução do acordo de 1878 Reprodução do acordo de 1878

Em 1885, foi assinado o Protocolo de Madri entre Reino Unido, Alemanha e Espanha, no qual a Espanha renunciava formalmente a qualquer direito sobre Bornéu e reconhecia o controle britânico da região, que ficou sob responsabilidade da Companhia Britânica do Norte de Bornéu para exploração colonial. Mais tarde, o território passaria a fazer parte das colônias britânicas.

Já em 1963, a ilha de Bornéu foi integrada à recém-formada Malásia e o sultanato de Joló passou a ser o estado de Sabah. Em virtude do acordo firmado em 1878, o governo malaio tornou-se o “herdeiro” daquela cessão/arrendamento do território e, por isso, manteve um pagamento simbólico anual de cerca de 5.300 ringgits (aproximadamente 1.110 euros por ano) aos descendentes do sultão.

No entanto, nas décadas de 1980 e 1990, foram descobertas jazidas de petróleo e gás nesse território, que começaram a ser exploradas pela empresa Petronas. Com um recurso de tamanha importância sob o solo e com interpretações diferentes sobre o significado do acordo original, os herdeiros do sultão de Joló começaram a pressionar a Malásia para que devolvesse suas terras. Algo que a Malásia rejeitou completamente.

Invasão de Sabah e início do conflito

Tudo mudou em 2013, quando um grupo armado de 235 pessoas ligado aos herdeiros do sultão de Joló invadiu Sabah, iniciando o que ficou conhecido como o Conflito de Lahad Datu, no qual reivindicavam a soberania da região.

A Malásia respondeu com força militar e prendeu os rebeldes, declarando que o estado de Sabah fazia parte de sua soberania. Como represália, suspendeu os pagamentos históricos aos descendentes do sultão. Essa suspensão marcou o início de uma longa disputa jurídica internacional. Agora, os herdeiros não tinham mais nem o suposto direito de propriedade sobre as terras, nem o reconhecimento da Malásia do acordo firmado em 1878.

Como, em 1878, o reino de Sabah estava sob controle administrativo da Espanha, os herdeiros do sultão entenderam que a jurisdição histórica era espanhola. Por isso, solicitaram uma arbitragem à justiça espanhola, confiando que os tribunais do país poderiam atuar como sede neutra para resolver o conflito entre a Malásia e os descendentes do sultão de Joló.

Território em disputa Território em disputa

De desacordo comercial a conflito internacional bilionário

Em 2019, já na Espanha, o Tribunal Superior de Justiça de Madri (TSJM) atribuiu o processo de arbitragem ao advogado Gonzalo Stampa. No entanto, em 2020, após analisar o caso com mais atenção, o próprio tribunal ordenou que o árbitro Stampa interrompesse o processo, ao determinar que o Estado da Malásia não poderia ser julgado por outro Estado.

Apesar da desqualificação e das ordens da justiça espanhola, Stampa ignorou a decisão e seguiu adiante com o processo de mediação.

Como, na Espanha, ele estava proibido de continuar o processo, Stampa transferiu a arbitragem para Paris e, em 2022, emitiu um laudo favorável aos herdeiros do sultão. No laudo emitido por Stampa — que, vale lembrar, naquele momento já atuava “por conta própria” e sem reconhecimento legal da Espanha — podia-se ler:

“[…] o Árbitro decide que os Demandantes têm direito a recuperar do Demandado o valor de restituição dos direitos sobre o território arrendado no norte de Bornéu. […] e ordena ao Demandado pagar aos Demandantes a quantia de 14,92 bilhões de dólares americanos.”

Pintura do sultão do final do século 19 Pintura do sultão do final do século 19

Ou seja, ele não apenas desobedeceu às ordens da justiça espanhola, como também condenou a Malásia a pagar uma indenização de 15 bilhões de dólares aos herdeiros.

Obviamente, nem a Malásia, nem a Espanha, nem sequer o Tribunal de Apelações de Paris e depois a Cour de Cassation francesa reconheceram a validade da arbitragem. Na verdade, o Supremo Tribunal espanhol condenou recentemente o árbitro Stampa por desacato e usurpação de funções.

Mesmo sem reconhecimento jurídico, os herdeiros tentaram executar o laudo confiscando bens da Malásia na forma de ativos da Petronas na Holanda e em Luxemburgo. Porém, os tribunais europeus suspenderam temporariamente os bloqueios por falta de base legal.

Paralelamente, os herdeiros do sultão de Joló apresentaram uma nova ação contra a Espanha exigindo 15,5 bilhões de euros, alegando que o país havia dificultado a execução do laudo arbitral. Essa demanda acaba de ser rejeitada pelo tribunal do CIADI (Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos), órgão vinculado ao Banco Mundial, que concluiu que não existia um “investimento protegido” e condenou os herdeiros a assumir os custos do processo.

O resultado é que a Espanha sai ilesa da disputa sem pagar um único euro, enquanto a batalha judicial pelo território e pelas indenizações contra a Malásia continua aberta, com múltiplos desdobramentos na Europa e na Ásia.

O que começou como um simples acordo entre um sultão e alguns empresários há mais de 140 anos acabou se tornando um intrincado conflito jurídico internacional que quase custou à Espanha 15,5 bilhões de euros sem que o país tivesse tido qualquer participação. O enredo legal ainda não tem um desfecho à vista. 

Imagem | Wikimedia Commons (Kawaputra)

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.


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