O Future Combat Air System (FCAS), concebido em 2017 como a grande aposta da Europa para construir o ecossistema aéreo de combate da segunda metade do século 21 e reduzir a dependência em relação aos EUA, enfrenta sua crise mais profunda.
Alemanha e França, motores políticos e industriais do projeto, consideram abandonar sua peça mais simbólica (o caça de nova geração) para se concentrar em seu único elemento ainda viável: o combat cloud, uma rede de comando e controle baseada em inteligência artificial capaz de integrar aviões tripulados, enxames de drones, radares, sensores e sistemas navais e terrestres em um mesmo ambiente operacional.
A mudança não parece ser apenas uma reorientação técnica, mas sim o reconhecimento implícito de que as divergências entre Airbus e Dassault Aviation chegaram a um ponto sem retorno. Em um momento em que a Europa busca demonstrar autonomia estratégica após a invasão russa da Ucrânia, o maior programa militar do continente corre risco de se romper devido à incapacidade de seus dois principais contratistas de compartilhar responsabilidades, ceder controle e alinhar visões industriais incompatíveis.
O divórcio Airbus–Dassault
O conflito entre a Dassault e a Airbus não é novo, mas agora atingiu um nível de tensão que torna impossível avançar com o caça. A Dassault, criadora do Rafale e empresa de tradição familiar, exige autoridade total sobre o projeto do avião e a escolha dos fornecedores. Por sua vez, a Airbus (que representa a Alemanha e parte da Espanha) defende que um projeto europeu dessa magnitude deve ser administrado com uma divisão equilibrada de trabalho.
As negociações estão paradas há anos e cada lado acusa o outro de descumprir acordos. Enquanto a Dassault ameaça seguir sozinha porque “tem toda a experiência necessária”, cresce em Berlim a tentação de substituir a França pelo Reino Unido ou pela Suécia — dois países que já participam do programa rival, o Tempest.
FCAS
O resultado é um círculo vicioso: sem confiança, não há cooperação; sem cooperação, não há avião; e sem avião, o FCAS se torna apenas uma casca vazia sustentada unicamente pela idéia do combat cloud.
A tentação alemã e o dilema francês
A pressão não é simétrica. A Alemanha, que flexibilizou seu limite de gastos para um grande rearmamento, não quer ficar refém de uma empresa francesa que bloqueia o avanço do projeto. Segundo o Financial Times, nos círculos do chanceler Friedrich Merz, ouve-se uma mensagem cada vez mais clara: se a colaboração não funcionar, Berlim tem recursos para continuar sem Paris.
Combat Cloud
A França, por outro lado, adota cautela: sua dissuasão nuclear depende do sucessor do Rafale a partir da próxima década. Um rompimento brusco poderia atrasar um sistema essencial para sua segurança estratégica. Embora Macron esperasse reconstruir a confiança após anos de desencontros, até mesmo vozes francesas admitem que o projeto está “paralisado e quase morto” e que a única saída real seria uma intervenção direta do presidente sobre Éric Trappier, o poderoso diretor-executivo da Dassault.
O combat cloud como refúgio estratégico
O fato de o avião estar estagnado não significa que o FCAS tenha perdido sentido. A peça mais transformadora do programa não é o caça, mas sim o sistema distribuído de comando e controle baseado em IA: um combat cloud europeu capaz de permitir que qualquer plataforma — Rafale, Eurofighter, drones de longo alcance, sensores navais ou radares terrestres — compartilhe dados em tempo real.
Esse sistema, desenvolvido por Airbus (Alemanha), Thales (França) e Indra (Espanha), é o único ponto em que todos concordam: a Europa pode conviver com vários modelos de aeronaves, mas não com redes incompatíveis dependentes do guarda-chuva tecnológico dos EUA, como acontecia com o F-35.
Por isso, discute-se acelerar a entrada em operação do cloud para 2030 — uma década antes do previsto — e consolidá-lo como pilar comum mesmo que o caça conjunto desapareça.
Para diversos países europeus, ter esse cloud próprio é a única forma de garantir que, se um dia Washington simplesmente olhar para outro lado, os exércitos do continente consigam operar de forma autônoma e coordenada.
Fracasso com implicações
Se o FCAS colapsar, não será apenas um revés industrial, mas um sinal geopolítico devastador. A Europa passa anos proclamando seu desejo de autonomia militar, mas sempre que tenta criar capacidades próprias, esbarra nos mesmos obstáculos: competição entre países, desconfiança política, falta de governança comum e prioridades divergentes.
Essa crise chega ainda em um momento crítico, quando a guerra na Ucrânia demonstrou que a superioridade tecnológica depende de redes, que o tempo de resposta é vital e que os sistemas ocidentais precisam interoperar sem falhas. O fato de que o maior projeto de defesa europeu pode ruir devido a disputas corporativas mostra o quanto o sonho de uma defesa integrada ainda depende de bases frágeis.
O Financial Times lembra que o calendário aperta. Paris, Berlim e Madri precisam decidir antes do fim do ano se financiarão o protótipo do avião — um investimento de vários bilhões de euros que ninguém quer aprovar enquanto o projeto permanecer bloqueado. As reuniões entre a ministra francesa Catherine Vautrin, seu homólogo alemão Boris Pistorius, Merz e Macron serão decisivas: ou o FCAS é redefinido em torno do combat cloud, ou se desintegra formalmente.
Todos repetem que a relação bilateral entre França e Alemanha não deve ser prejudicada, mas a realidade é que as empresas levaram o programa ao limite. O FCAS nasceu para simbolizar a Europa da defesa — mas, hoje, apenas o combat cloud mantém vivo esse símbolo como a última ponte possível entre duas indústrias, que já não sabem se ainda podem construir juntas o futuro da guerra aérea.
Imagem | RawPixel, Airbus
Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.
Ver 0 Comentários