Se você abrir qualquer mapa moderno — seja num livro ou no celular — vai encontrar o norte ali, no topo, firme como uma convenção absoluta do mundo. Mas essa ideia é bem mais recente (e arbitrária) do que parece. Por grande parte da história humana, a orientação dos mapas foi um reflexo direto de espiritualidade, poder político, rituais religiosos e até da forma como cada sociedade entendia o próprio lugar no universo. Em outras palavras: o norte só está acima porque alguém, em algum momento, decidiu que deveria estar.
A verdade é que nada nos pontos cardeais determina que o norte seja “superior”. Ele não nasce, não se põe e, até hoje, ninguém carrega um GPS biológico que o aponte de forma natural. Antes de ser uma coordenada, cada direção já foi símbolo — de luz, renascimento, morte ou devoção.
Mapa feito pelo astrônomo e geógrafo Claudio Ptolomeo
Na Idade Média europeia, por exemplo, muitos mapas colocavam o leste no topo, e isso não tinha nada a ver com magnetismo ou viagem marítima. Era pura significação espiritual. O sol nasce no leste, e para cristãos o oriente era associado ao Éden, ao nascimento e ao início da jornada humana. No famoso mapa-múndi de Hereford, feito por volta de 1300, Cristo está acima de tudo, e logo abaixo dele fica o Paraíso — isso porque o topo do mapa apontava justamente para o leste. O oeste, associado ao pôr do sol e à morte, ficava embaixo. Nas bordas, a palavra latina MORS (morte) reforçava o simbolismo.
Já no mundo islâmico, a história foi completamente outra. Para muitos povos muçulmanos, o sul era a orientação mais sagrada, porque era para lá que ficava Meca em relação às tribos que se converteram ao norte da Península Arábica. A consequência? Séculos de mapas-múndi com o sul para cima — inclusive o famoso produzido por Al-Idrisi em 1154. Neles, a Europa ficava diminuída, na base, enquanto o topo exaltava a direção religiosa mais importante.
Feito em 1300, este é o mapa-múndi de Hereford
A virada para o norte só aconteceria com a expansão europeia pelos mares. Não por misticismo, mas por necessidade técnica. A Estrela Polar, fixa no céu, acabou se tornando a guia crucial para navegadores que encaravam o oceano sem referências visíveis. E o mapa que consolidou de vez essa convenção foi o de Gerardus Mercator, publicado em 1569. Projetado para navegação, ele colocou o norte em cima não por importância simbólica, mas porque as linhas de latitude e longitude funcionavam melhor assim para traçar rotas.
Mercator acabou vencendo até Marte: sua projeção foi usada nos anos 1970 para mapear o planeta vermelho. Depois disso, a cartografia global abraçou o norte como padrão — mesmo que inúmeras culturas tivessem feito exatamente o oposto.
Este é o famoso mapa de Gerardus Mercator, de 1569
Hoje, porém, vivemos outra revolução silenciosa. Nossos mapas são aplicativos, não pergaminhos, e na tela do celular não é o norte que manda — é você. O mapa gira conforme o smartphone aponta. O topo deixa de ser uma convenção universal e vira apenas a direção para onde estamos andando. Prático? Sem dúvida. Mas especialistas alertam que essa conveniência pode estar custando nossas antigas habilidades de orientação, aquelas que moldaram nossa relação com o espaço por milênios.
Se antes nos guiavámos pelo sol, pelas estrelas e pelos ventos, agora seguimos uma rota na tela do celular ou da central do carro, esquecendo completamente dos pontos cardeais e qualquer coordenada que não sejam as que estão nos aplicativos.
Créditos de imagens: América Invertida de Joaquin Torres-Garcia de 1943, Getty Images por BBC
Ver 0 Comentários