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Há quatro anos, alguém atropelou um cachorro no Brasil: hoje sabemos que ele não era um cachorro e nem deveria existir

Dogxim não era simplesmente uma curiosidade genética, era um lembrete dos limites confusos entre as espécies em um mundo cada vez mais alterado.

Híbrido de raposa e cachorro foi atropelado em Vacaria, Rio Grande do Sul | Imagem: Errazking, Thales Renato Ochotorena de Freitas, Ariel Mergener Henckel
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Igor Gomes

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Igor Gomes

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Subeditor do Xataka Brasil. Jornalista há 15 anos, já trabalhou em jornais diários, revistas semanais e podcasts. Quando criança, desmontava os brinquedos para tentar entender como eles funcionavam e nunca conseguia montar de volta.

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A história se passa em 2021 e poderia ser o início de um filme. Naquele ano, ocorreu um acidente de carro no sul do Brasil. Não era um humano, mas um cachorro, que foi levado às pressas para um centro de reabilitação para tratamento urgente. Os primeiros testes no animal chamaram a atenção dos veterinários. Os testes subsequentes não deixaram dúvidas: ele latia e parecia um canino, mas, na realidade, nunca tinham visto nada remotamente parecido.

Dogxim, o híbrido

Sim, aquele cão estranho exibia um comportamento incomum: recusava-se a comer ração, preferia caçar ratos e subia em arbustos como uma raposa-dos-pampas. O que a princípio parecia uma peculiaridade individual revelou-se uma inovação científica: após meses de análise genética, uma equipe de pesquisadores brasileiros confirmou que se tratava do primeiro híbrido documentado entre um cão doméstico (Canis lupus familiaris) e uma raposa-dos-pampas (Lycalopex gymnocercus), duas espécies separadas por cerca de 6,7 milhões de anos de evolução.

O animal, uma fêmea chamada "Dogxim" (uma combinação de "cachorro" e "graxaim do campo", nome local para raposas), surpreendeu a comunidade científica por sua enorme viabilidade genética, um fenômeno extremamente raro entre diferentes gêneros da família dos canídeos.

Prova do improvável

Para certificar a origem híbrida de Dogxim, os pesquisadores começaram contando seus cromossomos: ele tinha 76, um número intermediário entre os 78 de um cachorro e os 74 de uma raposa-dos-pampas. A análise do DNA mitocondrial revelou que sua mãe era uma raposa fêmea, e o DNA nuclear confirmou uma mistura genética entre cachorro e raposa.

A combinação foi possível porque ambos pertencem à família Canidae, embora não ao mesmo gênero, tornando seu cruzamento ainda mais incomum. Na natureza, híbridos tendem a surgir entre espécies evolutivamente próximas, como coiotes e lobos. No entanto, este caso é mais semelhante a um hipotético cruzamento viável entre humanos e chimpanzés, algo considerado biologicamente inviável. Em outras palavras, o fato de Dogxim ter existido e ter sido funcional por pelo menos dois anos representou uma anomalia de alto interesse evolutivo e conservacionista.

Influência humana

Há muito mais a se pensar nessa história, já que pesquisadores enfatizaram que a existência do Dogxim parece ter sido facilitada pela pressão humana sobre os ecossistemas. O habitat natural da raposa-do-campo, caracterizado pelas vastas planícies do sul do Brasil, tem sido cada vez mais reduzido pela pecuária e pela expansão urbana.

O fenômeno aparentemente forçou um maior contato entre raposas e cães, particularmente aqueles abandonados por seus donos em áreas selvagens. Essa sobreposição territorial, combinada com o abandono de animais de estimação, aumenta a probabilidade de encontros reprodutivos entre as duas espécies. Embora as raposas não estejam ameaçadas de extinção, essa interação representa riscos tanto para a integridade genética da espécie quanto para a saúde da população, por exemplo, ao expô-las a novas doenças ou genes nocivos.

Uma criatura e seus limites

Embora alguns cientistas acreditem que esse tipo de híbrido permanecerá extremamente raro, o caso de Dogxim trouxe à tona o debate sobre os efeitos da hibridização em contextos de mudanças ambientais aceleradas. Embora a criatura parecesse saudável e tenha sido transferida para uma instituição estadual, morreu em 2023 de causas ainda desconhecidas. Sua cor preta, herança canina, contrastava com a pelagem clara das raposas de sua espécie, provavelmente tornando-a menos adequada para a sobrevivência em seu ambiente natural.

Além disso, híbridos interespecíficos frequentemente apresentam problemas genéticos, de fertilidade ou comportamentais, o que os torna mais vulneráveis. Apesar disso, sua própria existência sugere que os limites da hibridização natural podem ser mais flexíveis do que se pensava anteriormente, especialmente em um mundo onde mudanças ecológicas forçam contatos entre espécies que antes não interagiam.

Implicações

Este é o último dos três a ser analisado. Além de seu valor anedótico, Dogxim levanta questões cruciais sobre a conservação das espécies e a alteração de sua dinâmica evolutiva devido à influência humana. Embora não haja evidências de que esses híbridos possam formar populações estáveis, seu surgimento pode ter efeitos indiretos, desde a introdução de patógenos até a diluição genética de populações selvagens.

Talvez por essa razão, os pesquisadores estejam insistindo em estudos mais aprofundados sobre as consequências ecológicas e evolutivas desse fenômeno. Afinal, a criatura híbrida não era apenas uma curiosidade genética; era um lembrete das fronteiras tênues entre as espécies em um mundo cada vez mais alterado, onde o improvável não é mais impossível.

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