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Já tínhamos visto de tudo na Ucrânia, mas isto é novo; diante dos drones, a Rússia recorreu à sua “outra” artilharia: cavalos

A cavalaria não muda o rumo do conflito, mas é um poderoso símbolo de até que ponto os limites da tecnologia foram tensionados

Cavalos na guerra / Imagem: WarGonzo
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Victor Bianchin

Redator
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Victor Bianchin

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Victor Bianchin é jornalista.

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Em junho, algumas imagens destacaram uma perigosa evolução nas táticas de assalto: o exército russo começou a usar motocicletas como principal ferramenta para avançar sobre as linhas ucranianas, numa tentativa de evitar a destruição de seus blindados modernos diante do poder dos drones. Agora, a guerra eletrônica na Ucrânia transformou cada inovação tecnológica em uma arma com os dias contados. A solução? O retorno da cavalaria.

Sim, a guerra na Ucrânia, caracterizada por um uso massivo de drones, artilharia de precisão e guerra eletrônica, levou o exército russo a explorar soluções de aparência arcaica: a reintrodução de cavalos no campo de batalha. O que começou como improvisações com burros e cavalos para transportar suprimentos na linha de frente evoluiu para treinamentos formais de unidades de assalto montadas, segundo informou o jornal Kommersant.

A ideia reflete, em grande parte, o impasse a que as tecnologias modernas chegaram em um front saturado de interferências eletrônicas, onde até mesmo os sistemas mais sofisticados se viram limitados, obrigando o uso de métodos que evocam as guerras do passado.

Treinamentos e táticas

Na região de Donetsk, o comandante da unidade “Storm” da 9ª Brigada organizou treinamentos a cavalo para tropas de assalto. Os exercícios, gravados em vídeo e divulgados em canais do Telegram pró-governo como “WarGonzo”, mostram soldados galopando por campos abertos, alguns compartilhando montaria: um controla o animal e o outro se prepara para abrir fogo.

A ideia é que, uma vez alcançado o objetivo, ambos os combatentes desmontem e avancem a pé contra a posição inimiga. Os testes também visam acostumar os cavalos ao ruído de disparos e explosões, minimizando o risco de que se assustem em combate. Suas supostas vantagens incluem a capacidade de se mover à noite, correr sem necessidade de estradas e, segundo os comandantes russos, guiar-se por instinto para evitar minas.

Apesar dessas virtudes, o uso de cavalos apresenta importantes inconvenientes: seu peso pode detonar minas antipessoais, eles exigem alimentação e cuidados constantes e têm uma capacidade de carga muito inferior à dos veículos blindados.

Por isso, até mesmo o Kommersant ressalta que a cavalaria dificilmente será empregada em grande escala e que a medida é, acima de tudo, um gesto simbólico em um conflito que, embora seja palco de tecnologias de ponta, também obriga as partes a recorrer a soluções rudimentares — desde linhas telefônicas analógicas até animais de carga. A imagem de soldados russos a cavalo contrasta com o discurso oficial de inovação tecnológica e evidencia o desgaste material e tático da campanha.

Brigada de cavalaria da União Soviética na Rússia, 1941 Brigada de cavalaria da União Soviética na Rússia, 1941

O uso de cavalos não é a primeira tentativa russa de empregar alternativas pouco convencionais na linha de frente. Já foram documentadas unidades com motocicletas, quadriciclos e até patinetes e monociclos elétricos, com resultados variados.

Em particular, as brigadas de motociclistas destinadas a evitar os drones ucranianos sofreram baixas massivas: a exposição em campo aberto e a ausência de cobertura os tornaram alvos fáceis, com a maioria dos motociclistas eliminada antes de atingir seus objetivos. A aposta na cavalaria segue a mesma lógica: soluções rápidas e de baixo custo frente a um inimigo com vantagem tecnológica, embora sem garantias de eficácia real em combate.

Estagnação militar

O contexto desse retorno equino é o impasse da ofensiva russa. Entre 20 e 30 de setembro, Moscou conseguiu avançar apenas 29 km² e, embora no total do mês tenha somado 447 km², a maior parte dos ganhos ocorreu em áreas rurais pouco disputadas.

Em Donetsk, onde se concentra a unidade “Storm”, a Rússia avançou apenas 181 km², um de seus registros mais baixos em um ano. A linha de frente permanece praticamente congelada há semanas, o que obrigou o Kremlin a recorrer a medidas propagandísticas para mostrar dinamismo, enquanto a Ucrânia reconhece dificuldades, mas mantém a resistência em pontos-chave como Pokrovsk e Dobropillia.

Ecos do século 20

O retorno dos cavalos ao campo de batalha não é um fenômeno exclusivo da guerra na Ucrânia. Durante a Segunda Guerra Mundial, tanto a Alemanha quanto a União Soviética empregaram cavalaria em operações de patrulha e apoio logístico, enquanto a Polônia foi duramente estigmatizada pelas célebres cargas de cavaleiros contra tanques em 1939 — um mito parcialmente exagerado, mas que evidenciou a obsolescência da cavalaria clássica frente à mecanização.

Na União Soviética, entretanto, unidades montadas foram usadas de forma eficaz em ambientes florestais e na luta antipartidária, onde sua mobilidade oferecia vantagens que os veículos não conseguiam igualar. Em conflitos posteriores, os cavalos reapareceram em guerras de baixa intensidade ou em cenários de difícil acesso.

A resistência afegã contra a invasão soviética nos anos 1980 dependia em grande parte de cavalos e mulas para transportar armas em terrenos montanhosos. Paradoxalmente, após o 11 de setembro, as forças especiais estadunidenses destacadas no Afeganistão recorreram a cavalos para se movimentar junto a seus aliados locais — uma imagem que se tornou símbolo do choque entre a guerra tecnológica do século 21 e a geografia indomável do Hindu Kush.

A imagem de soldados russos galopando entre drones e artilharia resume o paradoxo da guerra na Ucrânia: em um conflito que se tornou vitrine de inovações militares (enxames de drones, inteligência artificial aplicada ao combate, armas hipersônicas e guerra eletrônica), o desgaste de materiais e o impasse tático devolveram ao campo de batalha ferramentas próprias de outra era.

Embora seja improvável que a cavalaria moderna mude o curso do conflito, seu simples reaparecimento é um poderoso símbolo de até que ponto a guerra na Ucrânia tensiona os limites da tecnologia e obriga a reinventar, mesmo com meios primitivos, a forma de lutar.

Imagem | WarGonzo

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.


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