Tendências do dia

O preço do ouro está disparando, o que criou um novo negócio criminoso: os "narcomineiros"

  • O preço do ouro triplicou na última década e subiu mais de 25% somente neste ano.

  • O metal que simboliza o refúgio em Dubai ou Zurique é extraído com mercúrio e violência em minas clandestinas.

O Banco Central Europeu alerta que a opacidade e a concentração do mercado de ouro representam um risco para a estabilidade financeira global | Imagem: Pexels e Africraigs
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Igor Gomes

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Igor Gomes

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Subeditor do Xataka Brasil. Jornalista há 15 anos, já trabalhou em jornais diários, revistas semanais e podcasts. Quando criança, desmontava os brinquedos para tentar entender como eles funcionavam e nunca conseguia montar de volta.

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Em Stilfontein, uma antiga cidade mineira na África do Sul, os moradores já não temem o vazio dos túneis abandonados, mas sim os estranhos que chegam em carros carregados de rifles. "Eles vêm por alguns dias, compram ferramentas e depois desaparecem", comentou um comerciante local. Não se trata de mineiros tradicionais. São gangues armadas que lutam no subsolo por um prêmio cada vez mais valioso: ouro.

Cenas semelhantes se repetem nas florestas da Amazônia, nos rios do Cauca colombiano ou nos túneis dos Andes peruanos. O que antes era uma corrida do ouro artesanal tornou-se uma guerra silenciosa. O metal precioso que em Londres ou Dubai representa refúgio e estabilidade financeira está contaminado no solo por mercúrio, sangue e crime organizado.

A corrida do ouro do século XXI

Segundo estimativas da Reuters, o preço do ouro triplicou na última década e subiu mais de 25% somente neste ano. Em 21 de agosto, o ouro era negociado a cerca de US$ 3.331 a onça, um recorde. Em meio à inflação, às guerras comerciais e às tensões geopolíticas, os investidores estão buscando no ouro o que ele sempre representou: segurança.

Mas essa corrida não se traduz apenas em lingotes de ouro em cofres. Também desencadeou uma corrida pelo metal nas áreas mais frágeis do planeta. A ONG SwissAid registrou em um relatório que 435 toneladas de ouro — cerca de US$ 31 bilhões — foram contrabandeadas para fora da África em 2022, o dobro do valor de dez anos antes. No Peru, o maior produtor da América do Sul, a própria autoridade reguladora estimou que 40% das exportações de ouro no ano passado foram ilegais.

Por sua vez, a ONU alertou que o crime organizado já está inserido nas cadeias globais de fornecimento de ouro. "As máfias estão ganhando mais dinheiro com ouro do que com cocaína", resumiu Sasha Lezhnev, analista do The Sentry, para o Financial Times.

Do submundo para o mercado global

Uma reportagem do Financial Times detalhou o esquema ilegal com bastante precisão, à medida que ele se repete: o metal sai de uma mina na Amazônia, de uma mina abandonada na África do Sul ou de um depósito controlado por paramilitares no Sudão; atravessa fronteiras por meio de contrabando ou com licenças falsas; chega a centros como Dubai, Suíça ou Índia; e, uma vez fundido em lingotes padrão, é perfeitamente integrado ao sistema financeiro internacional.

Em Dubai, conhecido como o "centro de lavagem" do ouro mundial, basta pagar em dinheiro para obter barras refinadas com selo dos Emirados. De lá, elas são reexportadas para a Suíça, Londres ou Hong Kong. Um comerciante admitiu sem rodeios: "Não vamos ao Sudão comprar ouro. Compramos no mercado atacadista, damos o dinheiro e recebemos. Ninguém pergunta de onde vem."

Modus operandi global

Por um lado, na América Latina, grupos como o Clã do Golfo, na Colômbia, ou o PCC, no Brasil, já operam minas e dragas. No Peru, quase 40 trabalhadores foram mortos em ataques a minas.

Enquanto isso, na África do Sul, os chamados zama zamas trabalham sob o controle de máfias em minas abandonadas, onde verdadeiras guerras subterrâneas são travadas. No Sudão, o ouro financia a milícia RSF, acusada de atrocidades na guerra civil.

A logística lembra o tráfico de drogas: voos clandestinos, pistas de pouso improvisadas, redes de corrupção. Com uma diferença crucial: enquanto a cocaína é sempre ilegal, o ouro se torna legal no momento em que é derretido em lingote.

As consequências são devastadoras

Segundo o Financial Times , o mercúrio envenena os rios amazônicos, a vida selvagem está desaparecendo e comunidades como os Yanomami sofrem com fome, malária e violência. "Quando o garimpo chega, chegam também as doenças e as drogas", explicou o líder indígena Juarez Saw.

Na África do Sul, aldeias inteiras sobrevivem em torno de minas fantasmas, presas entre a pobreza e a violência. E no Sudão, o ouro se tornou combustível para uma guerra civil que já ceifou mais de 150.000 vidas.

Governos estão na corda bamba

Estados tentam reagir, com sucesso parcial. No Brasil, o governo Lula destruiu acampamentos em terras Yanomami e ostenta uma queda de 98% no garimpo ilegal e uma queda de 40% nas exportações de ouro. Mas os garimpeiros retornam quando a operação termina.

Na África do Sul, a polícia bloqueia o acesso aos túneis, sem conseguir conter o poder da máfia. No Sudão, a pressão internacional forçou Dubai a reforçar os controles de compras, embora seu souk de ouro ainda esteja repleto de lingotes de origem incerta. O padrão se repete: corrupção local, territórios impossíveis de policiar e redes criminosas mais bem financiadas do que os próprios estados.

O mercado formal, inocente?

O sistema jurídico também não está imune. A Associação do Mercado de Ouro de Londres (LBMA) define padrões globais, mas é um clube privado de bancos e negociadores. Seu sistema de liquidação concentra o comércio global sem supervisão pública.

O Banco Central Europeu alerta que a opacidade e a concentração do mercado de ouro representam um risco para a estabilidade financeira global. Bernhard Schnellmann, ex-diretor da refinaria suíça Argor Heraeus, resumiu em sua coluna de opinião para o Financial Times: "O ouro é importante demais para ser deixado nas mãos de clubes privados."

O novo petróleo do crime

O ouro, símbolo eterno de riqueza e segurança, é hoje o novo petróleo do crime: um recurso que alimenta máfias, destrói florestas tropicais e financia guerras. Para investidores em Londres ou Dubai, é um porto seguro. Para mineradores clandestinos na Amazônia ou na África do Sul, é uma promessa de fuga que muitas vezes termina em violência.

Nos cofres, um lingote de 400 onças é idêntico, independentemente de sua origem. Mas por trás de cada barra, podem se esconder rifles, malária, corrupção e rios envenenados.

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