O nascimento de um movimento antileitura: cada vez mais pessoas admitem usar IA para resumir livros

O ChatGPT consegue resumir bem um livro de 900 páginas? A resposta é “sim e não”, e é nessa dualidade que reside nossa relação complexa com a inteligência artificial

Hábito da leitura / Imagem: Brad Rucker
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Victor Bianchin

Redator
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Victor Bianchin

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Victor Bianchin é jornalista.

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Marcos, estudante de 21 anos, admite que tem “muita dificuldade” para ler um livro inteiro porque não encontra “nem tempo, nem jeito, nem vontade”. Por isso, ele recorre à IA quando precisa ler um texto ou livro para a aula. “Quem não usou até hoje?”, pergunta.

Raquel, de 24 anos, também depende de ferramentas de inteligência artificial quando não tem tempo ou “vontade” de ler. Ela admite que, em algumas ocasiões, já sentiu que estava perdendo uma história que poderia ter gostado por usar IA, mas não se arrepende — e tem certeza de que vai continuar fazendo isso.

Nem Raquel e nem Marcos acreditam que recorrer a esse tipo de ferramenta seja algo perigoso ou preocupante: para eles, é apenas mais uma mudança entre tantas em sua geração. “Não é tão impactante, simplesmente as gerações mudam, lemos de outra forma. Somos uma geração que lê pelo celular e dispositivos tecnológicos”, explica Marcos.

A busca por atalhos para não ler não é algo novo nem exclusivo das gerações atuais. Estudantes sempre encontraram maneiras de evitar os livros e se virar em trabalhos ou provas: copiar resumos já feitos por editoras, pedir explicação a um colega ou recorrer a plataformas online.

Com a chegada da IA, não ler ficou ainda mais fácil. Basta uma busca nas redes sociais para encontrar dezenas de publicações com recomendações de aplicativos, sites ou ferramentas de IA que “prometem” que quem as usar não precisará sequer abrir o livro.

Sob títulos como “Sem tempo para ler livros? Conheça 4 IAs que leem por você (e melhoram sua compreensão)!”, são divulgadas ferramentas que resumem qualquer texto ou livro — e que também conseguem criar a partir deles mapas mentais, apresentações, vídeos e até podcasts (caso você não tenha tempo nem para ler os resumos).

Clay Banks/Unsplash Clay Banks/Unsplash

Nessas mesmas plataformas, os jovens expressam o alívio que sentem por não precisarem ler quando não querem. Uma usuária do TikTok insinua em seus vídeos ser mais “feliz” por não ter que “ler 765 páginas de um PDF”, já que lê apenas “o resumo e os flashcards” criados por um aplicativo.

“Os espanhóis leem cada vez mais”

A IA se tornou mais um acessório em nosso dia a dia, uma ferramenta da qual recorremos para um número crescente de tarefas. Já vimos seu potencial para resolver operações, programar e também para redigir e resumir textos. Daí surge uma pergunta: se a inteligência artificial pode escrever, resumir e até contar histórias, ela pode substituir a leitura? Por enquanto, na Espanha, não.

As estatísticas de leitura no país mostram um interesse crescente pela leitura em praticamente todas as faixas etárias: o percentual de espanhóis que leem no tempo livre ultrapassou, em 2025, pela primeira vez, os 65%, quebrando o mito de que os jovens não leem — 75,3% da população entre 14 e 24 anos lê em seu tempo livre.

Essa boa saúde da leitura convive com uma nova realidade: os jovens incorporam a inteligência artificial ao cotidiano com uma naturalidade impressionante.

Segundo o relatório Assim Somos. O estado da adolescência na Espanha, da Plan International de 2025, 62% das meninas e 59% dos meninos entre 12 e 21 anos entrevistados usam IA para resolver dúvidas relacionadas aos estudos. 68% delas e 61% deles temem “desenvolver certa dependência dessa tecnologia”. A leitura, portanto, não desaparece, mas começa a dividir espaço — e tempo — com uma ferramenta que pode substituir, complementar e transformar a forma como os jovens se relacionam com ela.

As habilidades da IA para redigir textos já são amplamente conhecidas pelos professores. O que começa a preocupar os docentes, segundo Patricia Sánchez, professora de Língua e Literatura em um colégio espanhol, é outra questão: delegar à IA tarefas como leitura, compreensão ou interpretação de um texto pode afetar o desenvolvimento dos estudantes? “Em certas idades, há tarefas que não devemos deixar nas mãos da tecnologia”, afirma a professora.

Emiliano Vittoriosi/Unsplash Emiliano Vittoriosi/Unsplash

Docentes como Sánchez alertam que recorrer à IA para ler, resumir ou redigir em vez de fazer isso por conta própria — especialmente em idades mais jovens — pode frear o desenvolvimento de habilidades fundamentais, como compreensão de leitura, escrita e capacidade de análise. Para Sánchez, é problemático que os estudantes “não adquiram certas competências”, que “não façam esforço, que não cometam erros e, por isso, não sejam capazes de resolvê-los”.

Organizações como a Unesco e o Fórum Econômico Mundial apontam que delegar atividades — como a leitura — à tecnologia pode afetar a memória e a capacidade de aprendizado.

Segundo uma análise de pesquisadores da Universidade do Chile, o “uso passivo” de ferramentas de IA como o ChatGPT pode “minar as bases da alfabetização”. Os autores reconhecem que a IA tem grande potencial no campo educacional, mas alertam para a necessidade de trabalhar e “praticar intensamente com textos escritos” para desenvolver “boa compreensão de leitura e habilidades de escrita”. Eles concordam com Sánchez que, ao ler, não apenas adquirimos informação — a leitura é essencial para fortalecer vocabulário, compreensão, raciocínio e pensamento crítico.

Segundo os pesquisadores, “ler funciona como um treino para o cérebro”.

Os CEOs que já não leem

O que inquieta a professora espanhola é que, no futuro, “não entendam” uma notícia ao ler um jornal, ou que lhes seja mais difícil “compreender o mundo em geral, ter paciência para parar, pensar, assimilar, ser capazes de formar uma opinião…”. Por isso, um bom uso da tecnologia precisa ter uma “base prévia”.

Uma vez adquiridas as competências e habilidades básicas relacionadas à leitura, segundo Sánchez, a IA pode ser uma aliada.

Já Nerea Blanco, filósofa e escritora espanhola criadora da plataforma Filosofers, acredita que, quando se trata de leitura, a IA “não é uma ferramenta que vá ajudar”. Ela alerta para o perigo de criar dependência e de precisar da inteligência artificial para “nos explicar tudo”. Usá-la quando não entendemos algo específico pode ser muito útil, mas, para Blanco, isso pode se voltar contra nós, porque “podemos deixar de colocar nosso cérebro para funcionar”.

Parece haver consenso de que o uso da IA para evitar ler está mais disseminado no meio acadêmico: “Quem quer ler Beowulf?”, comenta um usuário do TikTok em um vídeo em que recomenda aplicativos de IA que resumem livros. Porém, esse discurso também começa a aparecer entre alguns empresários e “gurus” da internet. O ritmo acelerado imposto pela sociedade atual torna esses “atalhos” para a leitura algo bastante atraente.

Callum Shaw/Unsplash Callum Shaw/Unsplash)

Nikesh Arora, CEO da Palo Alto Networks — uma multinacional estadunidense de cibersegurança — admitiu sem rodeios, em uma entrevista, que é “mais dos resumos do que dos livros”. O alto executivo da empresa — que é impulsionada por IA — questionava a “utilidade” de ler um livro de 500 páginas para, no fim, “destilar apenas 10”.

Sua postura representa uma tendência que parece estar cada vez mais difundida entre líderes tecnológicos que enxergam na IA um substituto perfeito para um número crescente de tarefas. O CEO da OpenAI, Sam Altman, por exemplo, admite usar a IA para todo tipo de atividade, incluindo “resumir documentos”. Já Mustafa Suleyman, CEO de Microsoft AI, acredita firmemente que “no mundo de antes, ler colocava você na frente dos outros. Muito em breve teremos que aceitar que um usuário experiente acompanhado de uma inteligência artificial poderá agir como se soubesse mais”.

A chegada da IA afeta até a forma como percebemos a formação tradicional e os diplomas universitários. Ryan Roslansky, CEO do LinkedIn, afirma com segurança que os empregos mais atrativos do futuro não serão exclusivos para graduados universitários. Para ele, importa mais “a disposição dos profissionais para se atualizar constantemente e adotar novas ferramentas tecnológicas”.

Essa visão também é compartilhada por Benjamin Mann, um dos seis engenheiros que deixaram a OpenAI para criar seu próprio modelo de IA: a Anthropic. Mann comenta que, há uma ou duas décadas, talvez ele tentasse preparar a filha para ser a melhor da turma e colocá-la em todas as atividades extracurriculares, mas hoje sente que nada disso tem tanta importância — o que ele quer é que ela seja “feliz, atenciosa, curiosa e gentil”; valorizando novas habilidades em detrimento de títulos e da formação tradicional.

Em direção a uma boa integração

A capacidade da IA de sintetizar ideias, fornecer resumos e responder a perguntas não substitui, em absoluto, a experiência da leitura. É no que acredita Javier Bardón, professor de psicologia social na Universidade Rey Juan Carlos. O autor de Ana contra Gürtel afirma que é impossível que a IA substitua aquilo que um livro pode nos fazer sentir.

“A literatura implica recriar mentalmente uma história e viver vicariamente os conflitos dos personagens — algo que se perde completamente com um resumo feito por IA”, diz ele. Ao recorrer à IA para resumir ou ler, perde-se a “vivência” de “seguir de mãos dadas com o personagem” e a capacidade de “experimentar por si mesmo os conflitos de outras pessoas”. O autor compara isso a “ver fotografias de Paris” em vez de ter estado lá. Embora a informação esteja presente, a experiência não foi vivida.

freestocks/Unsplash freestocks/Unsplash

Patricia Sánchez concorda que essa parte da “emoção” presente na literatura — e que é a mais “humana” — “é realmente a que está se perdendo”. A professora acredita que, se toda a leitura for mediada pela IA, não é possível haver o “prazer da literatura”, o descobrir o que gostamos e o que não gostamos.

O medo e a preocupação com um uso excessivo da IA coexistem com a visão do potencial que essas ferramentas podem ter. Longe de “remar contra a corrente”, como aponta Bardón, a chave está em aprender a integrá-la ao processo educativo: usá-la para aproximar textos complexos, despertar a curiosidade por autores clássicos e reforçar a compreensão daquilo que lemos.

Tanto Bardón quanto a professora Sánchez concordam que o valor da IA depende de bases sólidas. Ela pode ser muito útil para orientar a redação ou estruturar ideias, desde que os estudantes sejam aqueles que reelaborem e aportem seu próprio critério. A filósofa Blanco acrescenta que ela também pode atuar como um “companheiro de leitura”, uma ajuda que nos permita entender melhor aquilo que não compreendemos à primeira vista.

Imagem | Brad Rucker

Este texto foi traduzido/adaptado do site Xataka Espanha.


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